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Mostrando postagens de maio, 2017

Conto - Irmãos Gêmeos

— Tiago, você pode devolver esse pote pra Dona Vitória? — Disse Carol enquanto me mostrava a vasilha encardida que até ontem estava repleta de glacê e umas migalhas perdidas de bolo. — Ah amor... cê sabe que não gosto daquela velha. Ela fica se esfregando em mim. — Larga de ser besta, Tiago. Ela tem 90 anos. — Por isso que eu não gosto. Se tivesse uns 70 a menos a coisa melhorava um pouco. — Vem cá e me diz, pra quê eu falo umas besteiras dessas? A Caroline deu uma apertada de olho tão irritada, que meu olho encheu d’água. — É, deixa que eu levo pra ela. Você vigia os meninos? — Você vai demorar? — Disse erguendo os ombros. — Foi isso que eu perguntei? — Retrucou ela apontando o pote encardido na minha direção. — Não, mas fiquei curioso. — Cinco minutos. Você consegue ficar esse tempo todo sem fazer nenhuma besteira? Balancei a cabeça meio na diagonal, meio fazendo um círculo.  Eu sei, falta um pouquinho de autoestima aí, mas me conheço há mais

Conto - Continuamos a caminhar

A minha cabeça dói. Tiro meus óculos com a mão esquerda e, com os dedos da direita, faço uma pequena massagem por cima das sobrancelhas. Lógico que a dor persiste, mas permaneço com o movimento por alguns instantes. Ela é móvel pelo meu crânio. Pipoca por todos os cantos, escondendo-se debaixo do meu couro cabeludo. Invariavelmente se cansa e repousa sobre os olhos. Me acompanha há tanto tempo que por vezes esqueço da sua existência. Enervada pela minha indiferença, faz-se notar com mais força. Dou-lhe a atenção devida com as massagens inúteis. Ela retorna à felicidade rotineira e inicia um novo pipocar serelepe. Estufo o peito, alongo a coluna e, com um gemido pequeno, expilo o ar tentando aliviar a coluna. A cadeira de plástico não é das piores, mas depois de duas semanas, parece ter espinhos por todo o encosto. No relógio de parede bem na minha frente marcam 17h43min. Ainda. Desde a nossa chegada esse é o único instante informado pelo relógio. O ponteiro dos minutos treme u

Crônica - Paixões

Lógico que eu não o traí pra ficar com você! Me sinto mal por pensar isso de mim. As coisas entre a gente deixaram de fazer sentido. Eu fui obrigada a deixá-lo. Ele estava sugando todo o meu tempo, minhas energias. Eu só demorei para perceber isso, porque pensava estar apaixonada, mas no final tinha se transformado quase em uma doença. Não, não... ele não era assim no começo. Acho que nunca são, né? Quando eu o tive da primeira vez foi... é difícil te explicar. Mas ele era só meu. A atenção dele para comigo, me tratando como uma princesa. Era muito diferente de tudo o que havia experimentado.  Sim, como poderia não ficar apaixonada? Tudo em volta de mim perdeu o sentido. Esse é o normal da paixão. Você para de pensar. Eu só o queria nas minhas mãos. Passávamos o dia inteiro juntos e ele me dava tudo o que precisava. A minha impressão era de plena suficiência. Com ele todo o resto parecia irrelevante... até pior... parecia ultrapassado. A paixão me cegou sim, mas naquel

Crônica - Liberdade

O princípio não foi desenhado por memórias, mas por sensações. O bater ritmado do seu coração, o toque indireto tentando adivinhar minha forma e se eu a amaria, a sua angústia por desconhecer qual seria a extensão do seu amor por mim. A escolha me era vedada. Habitava um casulo e dele queria sair, mas em simbiose com o seu corpo, acalmava-me e, no entender irracional próprio da natureza, era forçada a esperar. Ao descortinar o mundo sobre mim, com seu peso, sons desconexos e luzes incompreensíveis, apenas o fluir do seu corpo fazia o meu próprio entrar em compasso. Deixara a prisão, mas permanecia conectada. O mundo foi-me apresentado aos poucos, pois pouco eu era como ser humano. Até sustentar-me sobre as pernas, meu universo era resumido ao que você, autoritária, permitia observar. O balançar dos braços e pernas, a angústia, a solidão, o choro... seus braços, o calor do coração inconfundível, meu ritmo se tornando o seu novamente. Paz. O andar embebido de risos e gritos difus