Conto - Irmãos Gêmeos

— Tiago, você pode devolver esse pote pra Dona Vitória? — Disse Carol enquanto me mostrava a vasilha encardida que até ontem estava repleta de glacê e umas migalhas perdidas de bolo.

— Ah amor... cê sabe que não gosto daquela velha. Ela fica se esfregando em mim.

— Larga de ser besta, Tiago. Ela tem 90 anos.

— Por isso que eu não gosto. Se tivesse uns 70 a menos a coisa melhorava um pouco. — Vem cá e me diz, pra quê eu falo umas besteiras dessas? A Caroline deu uma apertada de olho tão irritada, que meu olho encheu d’água.

— É, deixa que eu levo pra ela. Você vigia os meninos?

— Você vai demorar? — Disse erguendo os ombros.

— Foi isso que eu perguntei? — Retrucou ela apontando o pote encardido na minha direção.

— Não, mas fiquei curioso.

— Cinco minutos. Você consegue ficar esse tempo todo sem fazer nenhuma besteira?

Balancei a cabeça meio na diagonal, meio fazendo um círculo. 

Eu sei, falta um pouquinho de autoestima aí, mas me conheço há mais tempo que você, então confie em mim, a diagonal é a resposta mais honesta possível.

Carol deu uma suspirada e saiu. O eco do chinelo pisando forte na escada foi sumindo aos poucos enquanto ela subia dois andares.

Soltei o ar aliviado e fui para a sala ficar perto do Cauã, que assistia um desenho na televisão.

Nem cheguei a endireitar o corpo no sofá e o menino desliga o desenho, olhando pra minha cara.

— Papai, quero um irmão gêmeo.

Legal como as crianças pedem as coisas. Pode ser o maior absurdo da Terra, o rosto permanecerá com uma tranquilidade crocodílica.

— Por quê?

— Felipe tem um. Quero também. — Êta mania idiota desses meninos quererem competir em tudo.

— Difícil.

— Por quê?

— Hã... porque basicamente você já nasceu.

— Então para ter um tenho que nascer de novo? — A fisionomia de Cauã começava a ficar assustadoramente pensativa. Nunca é bom ver criança pensando muito. Elas não são acostumadas e quando fazem, sai merda.

— Sim.

— Como faço isso? 

— Olha Cauã, você já tem uma irmã. — Disse sem querer frustrá-lo demais, porém tentando encerrar a conversa antes que piorasse.

— A Helena é minha irmã gêmea?

— Não.

— Por quê? — Quem foi o miserável que permitiu a estes miúdos usar essa expressão endemoniada?

— Talvez o fato dela ter nascido 2 anos e meio depois de você tenha alguma coisa haver com isso?

— Então, como arrumo um? — De onde vem a perseverança desses moleques? Com certeza não é da fila onde entregam a inteligência.

— Não dá. O irmão gêmeo tem que nascer junto.

— O médico não pode ter esquecido lá?

— Por 6 anos? Complicado. Além do mais, sua irmã teria encontrado com ele quando passou férias na barriga da sua mãe.

— Mas, e se esqueceu?

— Vai por mim, sei que não esqueceu.

— Você olhou na barriga direitinho? — Com quem esse moleque aprendeu a ser tão curioso?

— Na barriga não, porque você nasceu de parto normal.

— E assim o neném não sai da barriga? — Perguntou com um olhar miúdo como se soubesse a besteira que estava falando.

— Não.

— Então por onde? 

Esperei uns dois segundos, medi o bichinho de cima a baixo e matutei um pouco se aquele projétil de gente, no alto dos seus 6 anos, tinha maldade no coração suficiente para entender isso tudo.

— Larga pra lá. Não tinha ninguém lá, tá bom? Conferi uma centena de vezes. — Vai lá garanhão! Fica se vangloriando pro menino. Um homem casado só faria esse tipo de conferência se fosse ginecologista.

De repente ele levantou do sofá e foi caminhando para o corredor. — Aonde você vai? — Achava que o assunto tivesse morrido.

— Vou chamar a Helena.

— Pra quê?

— Vamos voltar pra barriga da mamãe. Assim a gente nasce junto.

Saltei do sofá e segurei o seu ombro enquanto dizia — rapaz, não dá. Vocês têm diferença de 2 anos. Pra ser gêmeo, tem que ter a mesma idade, nascer no mesmo dia.

— Ebaaaa! — Comemorou depois de pensar uns 3 segundos no dito por mim.

— Ué? Pra que a felicidade?

— Já sei quem é meu irmão gêmeo!

— Hã?

— O Caio! Ele nasceu no mesmo dia que eu! Ele é meu irmão gêmeo! — Agora pulava pela sala, balançando os braços sem qualquer coordenação.

— Cristo! — Berrei. — Vocês têm mães diferentes.

— E o que isso tem haver? — Respondeu ofegante, sem parar de pular.

— Pra ser irmão gêmeo, tem que ter a mesma mãe.

Na hora parou como se tivesse tido uma epifania. — Eu e Caio temos a mesma mãe? O Caio nasceu do parto normal da mamãe também?

— NÃO!!! — Por favor, quem inventou essa asneira de que criança é uma bênção?

— Caio não é filho da mamãe?

— Lógico que não! — Disse aliviado, pensando que o encardido tinha compreendido.

— Então quem é a minha mãe?

“A puta que te pariu” era o que estava na ponta da minha língua. Já seria bem ruim dizer isso, mas, deixa eu te explicar, o problema não é dizer aquilo que mora na ponta da língua, mas o que fica logo abaixo, marinando na baba acumulada no porão da boca. E essa asneira marinada só sai de tempos em tempos, quando você pensa o suficiente para descartar a merda da ponta, mas se descuida e deixa escapulir a burrada maturada. Foi o meu caso naquela hora.

— Não sei, você foi adotado!

— TIAGO! QUE MERDA É ESSA???

Ah... droga! O grito da Caroline foi tão alto que meus tímpanos, ao invés de explodirem, fugiram de medo e até agora não deram notícia.

— Carol? — Cauã saiu da sala saltitante e começou a puxar a blusa da ex-mãe.

— O QUÊ? — Sinceramente não sei se o berro foi pra mim ou para o moleque pendurado na sua blusa.

— Vem comigo.

— PRA QUÊ? 

— Achar a minha mamãe. Tenho que encontrar meu irmão gêmeo!

É uma merda mesmo. Juro que vi duas ou três veias estourando nos olhos da Carol. Sei lá, mas, sem mais nem menos, me deu uma vontade louca de voltar para a barriga da minha mãe.

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