Crônica - Liberdade

O princípio não foi desenhado por memórias, mas por sensações. O bater ritmado do seu coração, o toque indireto tentando adivinhar minha forma e se eu a amaria, a sua angústia por desconhecer qual seria a extensão do seu amor por mim.

A escolha me era vedada. Habitava um casulo e dele queria sair, mas em simbiose com o seu corpo, acalmava-me e, no entender irracional próprio da natureza, era forçada a esperar.

Ao descortinar o mundo sobre mim, com seu peso, sons desconexos e luzes incompreensíveis, apenas o fluir do seu corpo fazia o meu próprio entrar em compasso. Deixara a prisão, mas permanecia conectada.

O mundo foi-me apresentado aos poucos, pois pouco eu era como ser humano. Até sustentar-me sobre as pernas, meu universo era resumido ao que você, autoritária, permitia observar. O balançar dos braços e pernas, a angústia, a solidão, o choro... seus braços, o calor do coração inconfundível, meu ritmo se tornando o seu novamente. Paz.

O andar embebido de risos e gritos difusos foi minha forma de estender o existir para além de sua redoma. E a queria longe... até o desconhecimento fazer tudo fraquejar. O solo, a dor, o choro, seus braços, nosso ritmo.

Sem ter personalidade ainda, eu era resumida a um querer-ser sua cópia. Apesar disso, não era a sua existência o meu objetivo, mas a sua liberdade. Eu a invejava. Calçar os sapatos desproporcionais, trajar as roupas abandonadas e pintar meus lábios sem qualquer coordenação, tinha muito mais um aroma de busca da liberdade que um mero imitar homenageoso. Mesmo assim, seu olhar úmido e o nosso ritmo num abraço risonho devolvia-me a ti.

Enquanto eu tratava a desengossice manual com resmungos nervosos, sua figura pairava ao meu redor sem julgamentos. Olhava para cima e pensava ver algo sobre-humano, hábil de uma forma que, com convicção, sabia ser inatingível. Ainda assim, você descia do pedestal, observava-me nos olhos e sugava a raiva com um sorriso. Estava hipnotizada novamente e limitava a repetir tudo o que mandava.

Aos poucos, porém, o tom professional cansou-me. Minha mente gritava manipulação. Você ansiava por tornar-me sua cópia. Essa era uma certeza. Iniciei uma nova busca por liberdade; mais intensa e complexa. Além da abolição física, minha mente também deveria ganhar o mundo.

Vi seu sofrimento e fingi indiferença. Era um remédio amargo a ajudar ambas. Seus gritos foram sendo bloqueados de forma paulatina. Precisava pensar por mim; sabia ser capaz. Você morava em outra época, onde as coisas eram mais simples. Nunca compreenderia a complexidade desta realidade.

Quando acordei no hospital, com parte do corpo imobilizado, era a sua figura a única a estar ao meu lado. Fechei os olhos aguardando o julgamento nunca proferido. Apenas seus dedos correram pelos arranhados da minha testa. Lábios tremendo. Dois sorrisos conflitantes. Lágrimas. Perdão.

Estava presa a ti novamente.

Segui contigo até o amor apresentar-me um novo existir. Perdi o chão conscientemente e parei de me importar com consequências. Estava amparada por ele e tudo passou a ter um contexto diverso.

Desta vez, porém, você soltou minha mão. Pela primeira vez permitiu o descolar sem culpa ou remorso.

Sofremos juntas. Como mais um dos milhões de paradoxos naturais, a separação consentida e querida por ambas foi a mais amarga.

Minha alforria veio com um pedido somente. Um neto. Rápido. Acenei com a cabeça e fiz nova promessa.

Lógico que a descumpri. O casamento descortinou um mundo de oportunidades. Um filho seria um quebra-mola. Eu não podia parar.

Alucinada pela velocidade com que o futuro rumava ao meu encontro, deixei o país. Este continente limitava meus sonhos. Minha ambição limitou a sua. Abraços doídos e seus dedos correndo meu rosto. Palavras secretas sussurradas ao ouvido marcaram o embarque para o mundo.

Você, mais uma vez, permitiu minha liberdade. Eu não pedi. Fui e a deixei com um único pedido entalado na garganta.

No trabalho o português tornou-se escasso. Assim como minhas ligações. O futuro vinha ao meu encontro. Estava livre e precisava concentrar-me naquilo que importava. O porta-retrato permanecia na mesa, mas meu olhar cruzava-o cada vez menos.

Só com o toque do telefone percebi a futilidade da liberdade tão querida.

Sentei-me ao seu lado e disse todas as desculpas com uma voz embargada e incompreensível. Seus olhos permaneceram fechados e ouvi como resposta o bipar da máquina que permitia seu respirar. Meus dedos correram sua face e orei por mais uma lição. As preces permaneceram presas no quarto e minha professora recusou esta última aula.

O tempo, indeciso, perdeu a noção do próprio caminhar. Naqueles dias andou vagaroso, respeitando meu luto. Ainda assim tocou-me no ombro para avisar a chegada do futuro. Expliquei a perda de sentido e que ele poderia passar. Talvez outro o aproveitasse. Voltei para casa.

Hoje olho no espelho e penso se a luta pela liberdade, para ser independente sem sua ajuda, valera à pena. Deslizo a mão sobre minha barriga ao sentir um chutar revoltado. Mais alguém deseja a alforria.

Duvido da minha capacidade de cumprir este papel. Pensei em seus conselhos, busquei uma resposta para as perguntas a surgir dentro de poucos dias. Percebi as ter no inconsciente. Senti sua força nos gestos repetidos e omitidos durante toda minha existência. Você falou-me diariamente, ainda que no silêncio... com um pender de cabeça repreendendo-me ou com o sorriso desprovido de sentido (sempre o melhor).

Continuo conectada a você. Hoje consigo perceber que somente posso exercer minha liberdade por estar ligada ao seu exemplo onipresente. Mais um chute. Preciso preparar-me para a última profissão da vida, à qual estarei presa até o apagar dos meus dias.

Nunca fui tão feliz.

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