Conto - Continuamos a caminhar

A minha cabeça dói. Tiro meus óculos com a mão esquerda e, com os dedos da direita, faço uma pequena massagem por cima das sobrancelhas. Lógico que a dor persiste, mas permaneço com o movimento por alguns instantes. Ela é móvel pelo meu crânio. Pipoca por todos os cantos, escondendo-se debaixo do meu couro cabeludo. Invariavelmente se cansa e repousa sobre os olhos. Me acompanha há tanto tempo que por vezes esqueço da sua existência. Enervada pela minha indiferença, faz-se notar com mais força. Dou-lhe a atenção devida com as massagens inúteis. Ela retorna à felicidade rotineira e inicia um novo pipocar serelepe.

Estufo o peito, alongo a coluna e, com um gemido pequeno, expilo o ar tentando aliviar a coluna. A cadeira de plástico não é das piores, mas depois de duas semanas, parece ter espinhos por todo o encosto.

No relógio de parede bem na minha frente marcam 17h43min. Ainda. Desde a nossa chegada esse é o único instante informado pelo relógio. O ponteiro dos minutos treme um pouco; esforça-se para caminhar. Falta-lhe energia. Realmente, o tempo aqui parece estanque, um tanto desiludido com o futuro. Prefere ficar onde está ao invés de encarar o porvir.

Eu, como todos os outros aqui, seguimos na mesma toada.

Olho para ele e lembro, com tristeza, ser o caminhar ininterrupto do tempo a única certeza do mundo. Maldito relógio.

Um fisgar nas costas faz-me pensar na coluna dele. Sentado na mesma cadeira de plástico ornada com espinhos, ele descansa as pernas esticadas em outra colocada por mim para aliviar a dormência.

A respiração é pesada. Ao menos está dormindo um pouco.

Confiro se a agulha por onde passa o soro permanece no lugar. Não pode perder a veia de novo. Seria outro martírio. Espero que os esparadrapos, desta vez, mantenham tudo no lugar.

A bolsa com o soro está pendurada na armação metálica um tanto enferrujada. O gotejar é lento. Disseram-me ter colocado o remédio junto ao soro. Sei da mentira. Finjo agradecimentos. Com o líquido transparente acrescentaram apenas algo para dor. Ao menos funcionou. A respiração permanece pesada.

Ao dormir, pendeu sua cabeça para o lado direito. Improvisei um travesseiro com um lençol fino enrolado. 

Passo os dedos por seus cabelos ralos. Como é bom ainda poder lhe fazer um carinho. Olho para meus dedos e vejo muitos fios quebradiços. Deixo-os cair no chão, junto aos demais. Ninguém vem os recolher.

Ao seu lado há uma grande lixeira verde. Sinto a humilhação de alegrar-me por ter conseguido, depois de duas semanas, chegar ao lado da lixeira. Fito a outra direção e sei da inveja de todos os demais. Queriam o meu lugar. Não os culpo. Já estive na posição deles e senti o mesmo.

Uma das primeiras lições aprendidas aqui é a auto indulgência com sentimentos egoístas. Porque o egoísmo é um atributo dos bem-aventurados a viver longe daqui. Este não é um lugar de culpa. Todos estão perdoados previamente.

“Vai demorar?” — Eu sequer havia notado seu despertar. A voz sai fraca e empapada do sono recém expulso.

“Agora não. Descansa.” — Perdi a noção do quanto repeti essas frases. Espero ser verdade desta vez.

Fora à parte o relógio à minha frente, ainda tremendo às 17h43min, o tempo segue seu ritmo próprio neste lugar.

O corredor longo é preenchido com sons variados. As conversas fugazes tentam entreter e fazer esquecer o incômodo da espera. Vez por outra um gemido nos recorda o motivo pelo qual aguardamos. As pessoas se ajudam como podem. Podem pouco.

De qualquer maneira, é um alento ter a companhia de todos neste momento. A dor nos une. Provavelmente, ela seja o mais forte elo a unir os indivíduos. Acredito que em um local diverso, sem o peso da situação, nós nem nos olharíamos. Por certo estaria julgando mal uma ou duas pessoas que aqui se encontram. Porém, hoje elas estão comigo, partilhando de idêntica realidade. Somos uma espécie de família; não quista, mas aceita pelas circunstâncias.

Um gemido ao meu lado.

“Você tá bem?”

“Sim. Só me ajeitei. As costas tão doendo.”

Eu sei. Nem precisa me falar. As minhas também gritam há dias.

Quando cheguei, o mais incômodo era o cheiro desse lugar. Uma mistura de álcool e mofo me deixava enjoada e completamente sem fome. Agora, acostumei-me de tal modo que o ar do exterior causa-me estranheza. Estranhamente puro.

Um funcionário atravessa o corredor sem nos olhar. Aciona o pedal da lixeira e deixa cair um pedaço de papel e uma casca de banana. Ela está cheia. Não noto cheiro algum. Sinto-me mal por isso.

A fome aperta. Não me recordo quando foi a última refeição, mas sei ter sido há tempo suficiente para fazer meu estômago contorcer-se, suplicando algo para digerir. Vasculho a bolsa e encontro uma maçã e um pacote aberto de biscoito de água e sal. Preciso de alguma coisa mais pesada. Enquanto me preparo para levantar da cadeira e ir buscar uma marmita no bar da esquina ouço um baque seco na porta vai-vem ao nosso lado.

Torno a aprumar o corpo na cadeira ao ver uma maca sendo empurrada por um enfermeiro. Ele fita o final do corredor e nos ignora sumariamente.

Sobre a maca um lençol branco cobre um corpo. Ele ocupa menos da metade do retângulo. As rodas, secas pela falta de óleo, bambeiam e fazem a maca dançar um zigue-zague suave. O chiado tristonho das rodas dita o ritmo do cortejo. O enfermeiro crava os dedos nas laterais de aço e mantém o rumo.

Meus olhos acompanham o corpo diminuto até travarem numa senhora parada a poucos metros de nós. Ela está procurando alguma reação no meu olhar. Talvez tente enxergar felicidade na minha fisionomia. Mantenho-me impassível e sustento a visão nela. Quem sabe ela esteja feliz? Se estiver, posso culpá-la?

Acompanhando o corpo, segue um casal abraçado. Cabeças apoiadas uma na outra e nenhuma lágrima. Eles estão sentindo pesar ou alívio? Eu também me sentirei aliviada?

“Mamãe, tá na minha vez agora?”

Fito o meu menino e não sei qual resposta dar. Talvez porque desconheça o sentido da sua pergunta. A vez de quê? Tenho medo de tentar descobrir e simplesmente puxo sua cabeça de encontro ao meu peito. Quem sou eu para discutir os desígnios divinos, mas de forma alguma parece-me certo que alguém com 07 anos esteja passando por isso tudo há 02.

“João Felipe Silva.” A voz da enfermeira assustou-me. Sequer escutara o barulho da porta.

Ela manteve os olhos cravados na prancheta. Não nos olhou. Nem precisava. Disse tudo o que queria ouvir há duas semanas. O nome do meu filho. Mesmo sem emoção, foi lindo escutar esse som.

“Calma, meu bem. Eu te ajudo.” Ele quase não consegue andar, pela fraqueza da doença e por estar há tanto na mesma posição. Puxo a cadeira onde apoiava as pernas, contorno para o seu lado esquerdo, retiro o soro do suporte e, segurando em seu braço raquítico, o ergo com facilidade.

Seus passos são arrastados e sem disposição. Olho para trás e vejo a mãe que me encarava amparando a filha de 10 anos. Estão se preparando para sentar na nossa cadeira. Posição privilegiada ao lado da lixeira. Devem estar felizes como eu fiquei quando, finalmente, pudemos sentar ali.

A enfermeira recusa-se a nos olhar. Sem dizer palavra, apenas atravessa a porta. Nós a seguimos no nosso ritmo. Apoio uma aba da porta com o corpo e a outra com a mão livre, após soltar o braço de João, abrindo caminho para ele adentrar na enfermaria.

Olho para minha direita e vejo uma imagem de uma Nossa Senhora Qualquer, trajando vestes azuis, com as mãos espalmadas para o alto. Pergunto-me se nesta sala Deus estará presente. A fé deixou de ser uma opção e passou para o status de necessidade quando a crença nos homens terminou. Vi demais em 02 anos para ainda me dar ao luxo de depositar minha confiança neles. Guardo os resquícios de esperança para Deus, onde talvez ainda tenha um alento, senão aqui quem sabe em outro lugar. O céu sempre me pareceu história para crianças, porém, hoje me agrada bem mais que o sofrimento atual.

Continuamos a caminhar sem pressa, mas com algumas migalhas de fé. Não conversamos ou trocamos olhares. Mantenho minha mão fechada em seu braço e a bolsa de soro elevada. À frente a enfermaria lotada. Muita conversa. Alguns sorrisos. A enfermeira está parada na frente de uma cama perguntando banalidades a uma funcionária. Esta troca o lençol do lugar reservado a João.

Uma criança acabara de falecer ali. Não me parece ter sido uma notícia de relevância para a maioria na sala.

Talvez a morte tenha se tornado rotina e, como tal, passa diante de nossos olhos sem que percebamos.

Olho para meu filho e rezo para não ser envolvida por essa rotina.

Ele está tentando sorrir. Por enquanto basta.

Continuamos a caminhar.

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