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Mostrando postagens de outubro, 2015

Crônica - Até tu, presunto?

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"Ah! Droga!" — Gritou Miguel enquanto levantava da mesa segurando seu café da manhã. Nela, o jornal era molhado aos poucos pelo café que ele acabara de derrubar. A capa escancarava a notícia: "OMS avisa: linguiça, bacon e presunto vão te matar de câncer". O desespero do Miguel vocês vão entender, mas só se a gente voltar um tanto no tempo, o que acontecerá... agora. Miguel sempre foi gordinho. Quando pequeno isso era até legal. Como também era dengoso, o excesso de fofura servia como imã para os dedos das tias que beliscavam suas bochechas até deixá-las roxas. Lógico que os beliscões eram ruins, mas o faziam parecer simpático, e simpatia na infância praticamente garante um estoque inesgotável de chocolate. O beliscão doía, mas o chocolate anestesiava. Justo. Na escola as coisas eram um pouco piores. Miguel era branco, usava óculos e mantinha uma barriga respeitável (não pelos colegas, claro). Essa combinação obrigava os demais alunos a usarem Miguel como alvo de tod

Conto - Cansado de Lutar

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Nossa, como estou cansado. O Sol está chapado lá em cima, mas a sensação é de ter pelo menos uns quatro outros me rodeando. O calor estoura dos lados e ferve sob os meus pés. Meus pés. Preciso sentar um pouco. O tanto que andei hoje, acho ser um milagre ainda estar de pé. Nem quero olhar quando tirar os sapatos em casa. Senti umas bolhas nascendo no início do dia. Elas já estouraram, mas umas filhas nasceram no lugar. Morreram logo. Devo estar com bolhas de sangue. Se é que essas também não estouraram. Preciso sentar um pouco. Caminho pela praça com a cabeça baixa. Não estou com a mínima vontade de olhar para frente. Já tem uns tempos que fiquei desse jeito. Preferia sim estar diferente, mas... nem sei o que eu preferia de verdade. Hoje eu estou cabisbaixo, ontem também, por aí vai. Olho um banco vazio logo à frente. Nem acredito estar vazio e ainda na sombra. "Deve estar cheio de merda de pombo". O pior é que não. Tão limpo quanto um banco de cimento numa praça poeirenta pod

Conto - Como uma onda

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A raiva não é um sentimento dado à sutilezas. Ela vem como uma onda, arrebenta na areia grossa da praia, desequilibra quem estiver à sua frente, espalha a sujeira para, no final, tragar tudo para o fundo escuro do oceano. Assim, nele a raiva também não o tomou aos poucos, ela o desequilibrou, destruiu sua razão e o deixou desorientado. Os punhos estavam cerrados e as mãos trêmulas tocavam de leve a bermuda jeans. Era como eletricidade estática, os pelos dos braços um pouco arrepiados vibravam com a descarga de adrenalina do sentimento. Ele percebia o sangue fluir nas veias apertadas no ritmo do coração; desritmado órgão que tentava compreender os comandos da cabeça, mas se perdia na fome da raiva, fome de justiça. Os dentes travados mandavam os músculos do rosto se contrair numa careta estranha. O ar quente que saía pela boca cantava um chiado medonho, que prenunciava a tempestade. A visão dele embaçou um tanto. Os olhos vermelhos eram a válvula de escape para o ódio. Gritava com lágri

Crônica - Uma realidade para chamar de minha

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O ônibus movimentava-se com a vagareza de quem sofreu durante todo o dia, trabalhando naquilo que sempre odiou, apesar da sociedade teimar em martelar em sua cabeça: “você nasceu para isso”. Ele apenas seguia o fluxo, mas este vivia de lampejos. O acúmulo de carros deixava o trânsito lento. Em pequenos espasmos encaminhava os carros à frente por poucos metros, cansava-se e ordenava a parada de todos. O ônibus iniciara seu percurso sobre a ponte. Estava cansado. O fluxo não ajudava. Aquilo iria demorar. De novo. Como ontem. Como amanhã. No interior do coletivo cheio um senhor quase encostava o queixo no ombro esquerdo. Com o rosto na direção do Sol poente perdia-se em pensamentos. Seu rosto recebia o Sol intenso, mas os olhos tentavam desviar dos raios; mirava o rio ou o que sobrara dele. Já passava das 18h, mas a claridade intensa em seus olhos impediam enxergar a água: “Bendito Sol e bendito horário de verão. Um dia vou descobrir a utilidade desta merda”. Esbravejava internamente como