Crônica - Uma realidade para chamar de minha

O ônibus movimentava-se com a vagareza de quem sofreu durante todo o dia, trabalhando naquilo que sempre odiou, apesar da sociedade teimar em martelar em sua cabeça: “você nasceu para isso”.

Ele apenas seguia o fluxo, mas este vivia de lampejos. O acúmulo de carros deixava o trânsito lento. Em pequenos espasmos encaminhava os carros à frente por poucos metros, cansava-se e ordenava a parada de todos.

O ônibus iniciara seu percurso sobre a ponte. Estava cansado. O fluxo não ajudava. Aquilo iria demorar. De novo. Como ontem. Como amanhã.

No interior do coletivo cheio um senhor quase encostava o queixo no ombro esquerdo. Com o rosto na direção do Sol poente perdia-se em pensamentos.

Seu rosto recebia o Sol intenso, mas os olhos tentavam desviar dos raios; mirava o rio ou o que sobrara dele.

Já passava das 18h, mas a claridade intensa em seus olhos impediam enxergar a água: “Bendito Sol e bendito horário de verão. Um dia vou descobrir a utilidade desta merda”. Esbravejava internamente como se alguém o fosse ouvir. Provavelmente não ouviriam mesmo que esbravejasse externamente.

Colocou a mão direita um pouco a frente da testa e a sombra o permitiu enxergar o pequeno fio de água que escorregava, dividindo a cidade ao meio. A visão o entristeceu.

Ele não quis deixar a tristeza evadir-se. Desejava aquilo. Às vezes ela age como um fixador para boas lembranças de um passado longínquo. Há momentos onde a tristeza presente é usada para intensificar alegrias passadas. Só é preciso ter cuidado para as alegrias passadas não intensificarem as tristezas presentes.

Olhando para o rio lembrou-se das pescarias com o pai severo, que deixava de sê-lo no barco, enquanto tentava arrematar algumas traíras. A cachaça costumava atrapalhar um pouco com os peixes, mas ajudava demais o então menino, que podia pilotar o barco sem qualquer bronca do pai. Salve a cachaça.

Permitiu-se um sorriso ao lembrar das corridas nas margens úmidas do rio. Os pulos sobre as pedras amoladas. O primeiro beijo na Maria, ao lado do pé de manga, escorado em uma antiga cerca, já quebrada.

Numa dessas corridas organizadamente sem sentido, deu-se de cara com a morte, não a própria, é claro, mas com a do Seu Carlos. Gente boa, vendia balas e pirulitos bem barato para os meninos da rua. Também vendia fiado. Vendia muito. Recebia pouco. Fez algumas dívidas. Não pagou nenhuma. Pagou com a vida. Era um cara bom. Enquanto vivo, claro.

Agora o rio nem assim podia ser chamado. A margem, antes estreita, hoje se alongava sem cerimônia até o meio do leito. Só era impedida de encontrar-se com a margem do outro lado, pois um fio de água preguiçosa e cambaleante teimava em andar por ali. Até quando ninguém sabia.

Um clique eletrônico livrou-o das divagações, trazendo-o de volta à cadeira do coletivo.

O ruído vinha do seu lado. Uma moça (para ele uma menina), de recém chutados 17 anos, tirara uma foto com o smartphone.

Quando ele a olhou, seu rosto já pendia para baixo, editando a paisagem carregada de tristeza e memórias do homem.

Ele a achou bonita. Aquele tipo de beleza nervosa da adolescência, onde se odeia tudo, com a aquele frescor charmoso de quem não faz a menor ideia de quem ou por quê está odiando. Mas pensou que, talvez, se não ficasse tão arqueada futucando o telefone, seria ainda mais bonita.

Olhou o restante do ônibus. Estava cheio fisicamente. Mas não havia ninguém ali naquele momento, de fato. A maioria, também acorcundada pelo celular, vivia uma realidade virtual repleta de festas, viagens, pratos de comida e fotos de gatinhos. Os demais, cansados pelo trabalho, experimentavam a letargia de quem abandona o corpo para viver uma outra vida, melhor e com mais férias que a atual.

Sem se fazer de rogado, arriscou uma olhada na foto tirada pela menina/moça. Ela já a editara. Arrancara todo o rio, deixando algumas nuvens e o Sol poente, que agora estampava um laranja nada parecido com a estrela que lhe queimava a pele (apesar do frio do ar condicionado do ônibus), muito embora estivesse bonito, bem mais que o real.

— Ficou bonito!

— Nada demais. — Balançou os ombros, desdenhando o próprio trabalho, enquanto, com um clique, postou no facebook.

— Bem, ao menos a edição ficou bacana. — Ela nem se dignou a mexer os ombros desta vez.

— Por que você tirou o rio? — Três curtidas apareceram na foto da moça.

— Porque ele tá feio. — Respondeu com ar de quem não entende a pergunta tampouco o motivo de estar respondendo. Oito curtidas.

— Mas ele compõe a cena. — Quinze.

— Tanto faz. — Dezoito.

— Se você não quer mostrar tudo, pra quê postar, então? — Vinte e quatro.

— Ué? Eu não vou postar um negócio desses. — Apontou para o rio. — Vinte e seis.

— Mas o rio é parte do todo. E já foi importante pra burro. — O Sol castigava. Só cobrindo os olhos conseguia ver o resto do rio. Trinta.

— Foi. Do verbo não é mais. — Trinta e uma.

Ele suspirou. A menina prestava tanta atenção ao rio quanto os demais no ônibus. Ou seja, nenhuma.

— Você tem muitos amigos. — Trinta e sete.

Ela olhava a foto e via o número de curtidas aumentar. Continuava impassível. Tinha um olhar irrelevante, como se ligada no piloto automático.

— Quantos desses aí você conhece de verdade? — Quarenta e três.

— Olha, isso é intimidade minha. — Sacou um fone de ouvido, enfiou-os nos tímpanos e foi descansar em seu mundo. Quarenta e nove.

Ele suspirou e também retornou para o seu mundo. Olhou o rio mais uma vez e foi se afogando lentamente em lembranças. O Sol machucava, o leito do rio era feio, a vida tinha deixado aquelas águas há tempos. Ele preferiu o próprio mundo ao dos outros.

De súbito os prédios engoliram a paisagem e puseram um fim às divagações. O frio do ar condicionado dentro do coletivo o oprimia. O conforto daquele lugar, agora desprovido do Sol massacrante, o angustiou ao ponto de faltar-lhe o ar.

Apertou o botão de alerta e desceu sozinho no primeiro ponto que apareceu.

Olhou o ônibus prosseguir em sua sina sem um fiapo de paciência. Cuspia uma fumaça preta que ajudava a compor o quadro poluído da cidade. Gritava com os demais veículos tentando se impor. Os outros saíam do caminho temendo a colisão. O ônibus se satisfez com aquele lampejo de poder. O único do seu dia. Seguiu roncando pela via, gritando ofensas que só a ele importavam.

Aquele não era o ponto do homem. A poluição da rua, o barulho dos carros, um homem cantando ofertas num microfone como quem suplica por pão, uma velha pedia trocados, meninos roubavam uns trocados, tudo era terrível para ele. Mas era a realidade, aquela que lhe cabia viver. Por enquanto bastava.

Certificou-se de fincar bem os pés no chão e começou a andar. Sua casa estava longe. A caminhada iria demorar. O jantar logo seria servido.

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