Crônica - Até tu, presunto?

"Ah! Droga!" — Gritou Miguel enquanto levantava da mesa segurando seu café da manhã. Nela, o jornal era molhado aos poucos pelo café que ele acabara de derrubar. A capa escancarava a notícia: "OMS avisa: linguiça, bacon e presunto vão te matar de câncer".

O desespero do Miguel vocês vão entender, mas só se a gente voltar um tanto no tempo, o que acontecerá... agora.

Miguel sempre foi gordinho. Quando pequeno isso era até legal. Como também era dengoso, o excesso de fofura servia como imã para os dedos das tias que beliscavam suas bochechas até deixá-las roxas. Lógico que os beliscões eram ruins, mas o faziam parecer simpático, e simpatia na infância praticamente garante um estoque inesgotável de chocolate. O beliscão doía, mas o chocolate anestesiava. Justo.

Na escola as coisas eram um pouco piores. Miguel era branco, usava óculos e mantinha uma barriga respeitável (não pelos colegas, claro). Essa combinação obrigava os demais alunos a usarem Miguel como alvo de todas as brincadeiras. Era um código de ética informal da escola, os pobres meninos não podiam fazer nada contra.

Seu pai, rígido, desconhecia o termo bullying, novo para a época. Quando Miguel foi tentar explicar o significado, ele traduziu (e reduziu) o conceito complexo como frescura. O menino aceitou; os argumentos faziam sentido dentro da lógica do pai.

"Então pai, o que eu faço para eles pararem de me chamar pelo apelido?"

"Qual é o apelido?"

"Supositório de elefante."

O pai pensou um pouco e nem achou tão ruim assim, afinal, tinha fundamento.

"E ele te incomoda tanto assim?"

"Ah, um pouco. Talvez ele me prejudique com as garotas."

O pai sentiu o riso subir pela garganta e travou a boca impedindo a saída. Vazou pela orelha. "Que garotas?"

"É... deixa pra lá."

"Tá bom. Olha aqui. É só ignorar que eles vão parar com isso. Se você não ligar, perde a graça."

Miguel voltou confiante para a escola e seguiu o conselho do pai. Ganhou mais oito apelidos. Mas nem todos pegaram, só o OB de baleia, resto de foda, gordo escroto, presuntinho, sobra de lipo e aborto fail.

Ah... e Miguel tinha razão, isso atrapalhou com as garotas. Quase num nível proibitivo.

Fora isso sua vida manteve-se tranquila até os 25 anos. Talvez o fato de ser tímido, gordo, sem vida social e sem amigos tenha ajudado, mas é só um palpite.

Nessa época seu pai faleceu. Infarto. Até aí tudo bem, Miguel nem sentiu tanto. Ele não tinha sido o pai mais carinhoso do mundo mesmo.

Mas todo filho tem seus deveres. O seu naquele momento era ajudar a carregar o caixão. Tudo correu bem por três metros. No quarto o peito de Miguel gritou, a cabeça dançou uma ciranda e a visão foi descansar... só retornou no hospital. Lá um médico com cara de sono falou de forma tranquila:

"Ou você perde 90kg rápido ou vão te esquartejar para encaixar você nos caixões."

Miguel entendeu isso como um sinal de que precisava perder algum peso.

Alguns amigos recomendaram procurar um nutricionista. Ele descartou de cara. "Eu sou a pessoa mais entendida do mundo no quesito comer, pra quê gastar dinheiro com alguém que pensa conhecer mais sobre isso que eu?" Os amigos não conseguiram questionar o fato de Miguel ser o maior conhecedor de comida do mundo.

Ele partiu para o mais lógico e seguro, pesquisar no google. Depois de 10 minutos olhando sites variados percebeu que, mais ou menos, 100% daquilo que comia diariamente ou engordava ou causava câncer (normalmente enquanto engordava).

Com uma dor no coração e algumas lágrimas, resolveu iniciar despedindo-se do bacon. Sentiu os efeitos da abstinência por três dias, quando conseguiu dormir. Por duas semanas a saudade foi imensa; não comia uma fatia sequer de bacon, mas podia sentir o gosto do óleo que, praticamente, lubrificou sua boca por mais de duas décadas.

Aos poucos o sabor gorduroso foi desaparecendo até se tornar uma lembrança. Depois de um mês a balança o avisou aliviada que estava quatro quilos mais leve.

Isso animou Miguel a cortar um pouco mais. Extirpou a calda de chocolate do sorvete. Depois de um tempo, uma bola de sorvete sabor chocolate (que deve ser mais calórica se comparada à de morango). De bola em bola, passou a comer só a casquinha, tentando mentalizar o sorvete derretendo na boca.

Estava começando a ficar depressivo com a nova vida, mas estabeleceu ser apenas uma frescura temporária. Logo passaria.

A Dieta correu bem até perder 20kg, quando estagnou um pouco. Quase cortando os pulsos decidiu ser hora de entrar em uma academia. Na mesma época, começou a pesquisar mais sobre os alimentos e como eles podem lhe causar uma morte dolorosa.

A primeira coisa a fazer era excluir o glúten da alimentação. Isso significou o fim dos pães, bolos, biscoitos, pizzas, cerveja, alegria, felicidade e outros 20kg.

Entre um choro e outro, alegrava-se pelo menos porque agora conseguia amarrar o cadarço do sapato (aliás, seu sapato tinha cadarço, o que já era motivo suficiente de alegria) e depois de um longo tempo pode contemplar seu pinto novamente (quase não o reconheceu, depois desse período de afastamento).

Na academia as coisas estavam começando a melhorar. Seu instrutor disse que o segredo do sucesso era comer muita proteína. Danou a comer carne como um doido (o que era ótimo), até ler uma pesquisa sobre a relação da carne vermelha com o câncer (o que não era tão bom assim).

Seu professor, então, disse para ele cair matando no frango. Miguel assim fez. Comia os bichos de manhã, de tarde e de noite. Era seco e sem graça, mas passava. Passou até assistir a um documentário sobre os hormônios colocados na comida das penosas. Miguel sentiu o tumor crescer em sua barriga. Suspendeu o frango na hora.

Meio que sem saber para onde encaminhar Miguel, o professor passou-lhe suplementos. Miguel achou ótimo! Tinha proteína sem o câncer no intestino da carne vermelha e os linfomas do hormônio do frango. E ainda tinha gosto de chocolate.

Estava começando a ver os músculos brotando no braço quando descobriu que os suplementos tonificam também os rins e o fígado até o ponto deles explodirem.

Ficou completamente transtornado. Imaginava a quantidade de porcaria que tinha ingerido e teve certeza da presença do câncer em cada glóbulo vermelho correndo nas veias. Os médicos podiam falar o contrário, mas ele sabia a verdade. Não fazia ideia de como retirar esses venenos do corpo; no desespero passou a beber muita água. "Ela é o solvente universal, deve diluir um pouco essas merdas."

No dia seguinte foi na academia e gritou com todos os professores, ameaçou de processá-los por tentar um homicídio lento por envenenamento. Virou vegetariano naquele instante.

Foi embora para casa andando e, vendo o engarrafamento na avenida, percebeu a quantidade de fumaça jogada pelos carros. Chegou em casa e descobriu que, morando naquele lugar, estava transformando seu pulmão em pedra (segundo o google). Era como se fumasse três maços de cigarro por dia.

Disse adeus à casa e mudou-se para o interior.

Não buscou mais academia. Sem a carne estava sem forças para o exercício. Pelo menos agora estava magro.

Enquanto degustava um pepino como café da manhã, leu uma reportagem sobre a morte de agricultores pelo excesso de agrotóxicos na lavoura. Cuspiu o pepino no jornal e correu para beber uns dois litros de água de uma vez. Tinha que dissolver um pouco aquele veneno.

Começou a comer só alimentos orgânicos, mas isso não era nada fácil. Pra falar a verdade, comer estava ficando cada vez mais difícil. Cogitava alimentar-se de luz.

Bom, de luz não ia dar. A quantidade de raios ultravioletas destruidores de pele impediam isso. Para não ser tomado pelas feridas do câncer de pele, só saía de casa com protetor solar. Foi ficando cada vez mais branco. Como já estava bem magro, tornou-se impossível ir na rua sem que alguém perguntasse se estava doente. "Nossa! Como você tá pálido." Diziam todos.

Começou a passar uma base no rosto para disfarçar a cor leitosa. O povo do novo trabalho percebeu e seu nome profissional mudou-se para veado.

Vivia à base de antidepressivos e bife de soja... isso até descobrir que quase toda a soja consumida no Brasil é transgênica e que transgênico é sinônimo de mutação genética. Daí para ele começar a ver tumores brotando no pâncreas foi um pulo.

Sem ter o que fazer, resolveu voltar a comer carne... mas só duas fatias de presunto... uma vez por semana.

Era domingo, dia da sua cota semanal de carne. Preparou o pão (sem glúten) com creme de ricota light, uma fatia de queijo branco e duas de presunto. Sentou à mesa e começou a degustar o lanche seco e sem gosto enquanto lia o jornal.

"OMS avisa: linguiça, bacon e presunto vão te matar de câncer."

Miguel saiu correndo com a boca cheia do lanche cancerígeno. Cuspiu tudo no lixo.

"Ah! Droga! Que inferno! Não aguento mais!" Sentiu vontade de comer um sorvete de chocolate, com cauda de caramelo, coberto com creme de picanha e bacon frito picado. Correu para a geladeira e só viu duas cenouras, um pé de alface e um aipo, tudo colhido no quintal da própria casa. Sem agrotóxico, remédios, venenos, prazer ou gosto.

Precisava de gordura, carne, frituras, doces, mas sabia que isso o mataria. Sentiu a casa se fechando sobre ele. Tinha que se desintoxicar daqueles pensamentos. Bebeu água. Um, dois, três litros... de uma só vez. Quando a água da geladeira acabou, passou para a torneira da pia.

Quando terminou estava feliz, tinha conseguido retirar a vontade de comer venenos. Mas algo estava estranho. Ficou tonto, passou a tremer. Caiu no chão e ali ficou para nunca mais levantar.

A autópsia apontou hiponatremia, abuso no consumo de água. As convulsões o fizeram afogar na dezena de litros ingeridos de uma vez.

Uns poucos amigos sentiram sua falta. Foram ao enterro e, dias depois, fizeram um churrasco em sua homenagem. Internamente todos ficaram felizes em saber que um dia poderão morrer em paz, de câncer.

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