Conto - Como uma onda

A raiva não é um sentimento dado à sutilezas. Ela vem como uma onda, arrebenta na areia grossa da praia, desequilibra quem estiver à sua frente, espalha a sujeira para, no final, tragar tudo para o fundo escuro do oceano.

Assim, nele a raiva também não o tomou aos poucos, ela o desequilibrou, destruiu sua razão e o deixou desorientado.

Os punhos estavam cerrados e as mãos trêmulas tocavam de leve a bermuda jeans. Era como eletricidade estática, os pelos dos braços um pouco arrepiados vibravam com a descarga de adrenalina do sentimento. Ele percebia o sangue fluir nas veias apertadas no ritmo do coração; desritmado órgão que tentava compreender os comandos da cabeça, mas se perdia na fome da raiva, fome de justiça.

Os dentes travados mandavam os músculos do rosto se contrair numa careta estranha. O ar quente que saía pela boca cantava um chiado medonho, que prenunciava a tempestade.

A visão dele embaçou um tanto. Os olhos vermelhos eram a válvula de escape para o ódio. Gritava com lágrimas. Não queria gritar. Queria agir. Queria o silêncio da morte.

Secou os olhos com o dorso da mão esquerda. A pele branca brilhou um pouco com o líquido salobro refletindo o Sol de final de tarde. Não fazia mais calor, mas o suor escorria por suas costas.

Olhava para ela ajoelhada na grama da praça e soube como seria o fim, só precisava construir o meio. Isso seria agora.

Virou-se para o portão de casa deixando-a acariciando o cachorro.

A casa estava abafada. Ela sempre estava abafada naquela hora. Dali uns 30 minutos o Sol sumiria e o vento oeste entraria pela janela da copa renovando todo o ar. Em 30 minutos isso já não teria importância.

— Ela não pode fazer isso comigo de novo, não é justo. — Ele repetia entre os dentes andando como um soldado pela casa vazia. Sala. Copa. Porta do Corredor. Quarto.

Deu a volta na cama de casal. Parou no criado-mudo e foi direto para a terceira gaveta. As outras eram irrelevantes.

Retirou alguns papeis inúteis e incompreensíveis e achou a caixa. Um som metálico encheu o cômodo avisando estar aberto o recipiente. Sentou-se por um instante e mirou um pouco o conteúdo.

"Por que ela faz isso toda a vez?"

O chiado do ar saindo por entre seus dentes diminuiu e o coração encontrou um ritmo quando segurou a arma com a mão direita.

O revólver estava velho. Passou o dedo sobre um ponto cobre e uma pequena marca de ferrugem manchou parte do indicador esquerdo.

Torcia o pulso para a direita e para a esquerda admirando a arma. Ela resolveria o problema.

Apontou o revólver para si e, pelos pontos cor chumbo adormecidos no tambor, percebeu estar carregado.

Com a ponta da arma no chão e a mão na cama, apoiou-se para levantar.

Enquanto saía do quarto sentia a mão fria pelo metal. Ainda assim estava molhada de suor. Trocou a arma de mão e secou a palma direita na camisa regata. Era estranho segurá-la com a mão esquerda, nem em sonhos pensaria em atirar com aquela mão cega. Devolveu-a para a direita e seguiu seu caminho sem se preocupar. A casa estava vazia, só se encheria dali a uma hora.

Antes de sair pela porta da sala, parou e respirou um pouco. Estava difícil mantê-la firme na mão. Ela era muito mais pesada do que lembrava.

Não teria outra chance. Apoiou a mão esquerda na maçaneta, respirou rápido pela boca para ver se parava de tremer um pouco. Não funcionou. Sentiu medo. Não do que aconteceria depois, mas de errar. A última coisa que queria era ver todos zombando dele novamente. Isso não. Principalmente ela não faria isso de novo.

— Essa foi a última vez. Quem ela pensa que é? Eu disse que o queria para mim. Eu mandei ela dar pra mim. Ela não pode negar. Não de novo. Isso. Essa é a última. Agora eu quero ver.

Sua voz saía chorosa, mas um sorriso estampava o rosto. O som que desprendia dos lábios raspavam o incompreensível. Eram uma mistura de ódio, dentes cerrados e saliva.

Os olhos encheram de lágrimas mais uma vez. Secou logo com os ombros. A porta foi aberta e o ar puro renovou sua coragem.

Atravessou o quintal curto, passou pelo portão e atravessou a rua.

Ela estava de costas ainda. O cachorro deitado de barriga pra cima estava quase dormindo.

Parou a dois metros dela e apontou a arma. Ela estava balançando em sua mão direita. Abaixou. Não podia errar.

Dois passos para frente. Mirou os cabelos dourados que, para onde a arma estava apontada, perto da nuca, eram lisos, quase angelicais.

O indicador fez força no gatilho. A mão tremeu ainda mais. Ia errar. "Como esse troço é duro". Segurou a arma com as duas mãos. Os dois indicadores começaram a mover o gatilho. Quando o cão retrocedeu metade do caminho fechou os olhos. Ainda assim percebeu o clarão da pólvora.

O barulho acordou a morte. O bairro não seria mais o mesmo.

Como se alguém tivesse assoprado, apenas uns poucos fios de cabelo dela se mexeram quando a bala atingiu sua nuca. Os braços pararam o afago no cachorro.

O animal deu um salto e correu da praça. Correu para nunca mais ser visto.

— Mas? Não. Era para você ficar. — Ele balbuciava enquanto os olhos acompanhavam o animal desesperado. Voltou-se para ela e viu seu corpo pender para frente. Braços esticados para trás, rosto no chão.

Ajoelhou-se, colocou a arma de lado e tentou entender o motivo do cachorro ter fugido daquela maneira. Ele tinha mostrado força e coragem, afinal, só os corajosos matam. E mesmo assim ele tinha ido embora.

A incompreensão pela fuga do animal fulminou a raiva que sentira há pouco. Ainda desnorteado, passou a olhá-la. Seus olhos não tinham mais sentimento.

Um mundo de lembranças e pensamentos passaram a martelar sua mente, mas não conseguia identificar nenhum deles, todos queriam espaço, todos ao mesmo tempo.

Não percebeu o movimento da rua. Não ouviu o murmúrio curioso, tampouco notou os gritos de medo. Um homem caminhou na ponta do pé, retirou a arma lentamente e entregou a um outro que vinha atrás.

O homem o olhava com o medo de quem encara o demônio.

— Tio, por que ela não sangra? — Ele perguntou ainda ajoelhado.

— O quê?

— Por que ela não sangra, tio. — A mão pequena do menino segurou na do homem e apontou para a garota deitada.

Ele já tinha visto muitos filmes nesses 10 anos e sempre as pessoas sangravam demais. Às vezes jorrava. Nada jorrava ali. Era bem sem-graça. Conseguia ver alguns fiapos da nuca molhados, mas só um pouquinho, como se tivesse jogado um copo pequeno com um tanto de sangue.

Os minutos passaram rápido. Muitas pessoas rodeavam as duas crianças. Só uma percebeu. Os policiais chegaram, abaixaram perto do garoto e perguntaram alguma coisa sem importância; ele não fez esforço para escutar.

— Tio, você veio trazer o cachorro? — Perguntou o menino fazendo o policial pular de susto.

— Que cachorro, menino?

— O que estava brincando com ela. Eu queria brincar com ele, mas o tiro assustou o bicho. — Olhou para cima encarando o policial. — Os tiros são sempre alto assim?

— Seus pais chegam que horas?

— Daqui a pouquinho. Onde está o cachorro, tio?

— Eu não sei filho. Não sei. — O policial passava a mão nos cabelos do menino. Sentia medo. Como não sentir? Queria bater naquele menino, mas... era uma criança. Era uma criança? O policial não soube responder. Continuou afagando o garoto até seu colega de farda lembrá-lo que seria melhor sair dali. O povo estava começando a sair do transe, logo as coisas ficariam mais difíceis de controlar.

— Vai cara. Leva o moleque daqui. Vou segurar as coisas até o resto do pessoal aparecer.

O companheiro acenou e levantou o garoto com calma. O menino não percebeu o diálogo, a multidão, o choro, os gritos, a raiva e o desejo de linchamento que, aos poucos, nascia no coração de alguns.

Uma criança foi encaminhada para a viatura e colocada no banco traseiro, a outra persistiu em não se mexer. Ninguém olhou para trás.

Sentado na viatura, o menino tentava compreender os resultados. A mecânica estava certa. A consequência, como previsto. Mas o resultado não batia.

O carro começou a movimentar-se. Aos ouvidos do menino o som do motor, do choro e gritos se misturavam em uma pasta disforme. Algo, porém, distinguiu-se. Torceu o corpo, ajoelhou no banco macio, abraçou o encosto de cabeça, repousou o rosto e observou.

Os pais dela chegaram.

O homem gritava. A mulher batia no peito. Ambos choravam. A testa dele se apoiava nas costas da menina. Ela passava a mão nos cabelos loiros. Ele levantou, olhou perdido em volta e encontrou o carro. Correu. O carro correu mais.

O pai tentou. Correu o quanto pode. Correu para tentar entender. Correu para se vingar, para fugir, para sumir, para morrer. Suas pernas pesaram e perderam o ritmo aos poucos. Os braços afrouxaram. Ao parar, as mãos encontraram o rosto e abafaram um pouco o choro. Deitou-se no asfalto ainda quente e decidiu que jamais levantaria.

Dentro do veículo, o menino tudo observou até virar a esquina. Nada sentiu. Sentiu falta do cachorro.

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