CRÔNICA - EU QUERO UM BOLO


Você sabe que a velhice começa a se esfregar no seu cangote quando passa a ser saudosista pelos motivos mais imbecis.
Nesses últimos dias, por exemplo, passando o dedo pelo caminhão de notícias políticas que afogam nossos celulares, senti uma saudade doída dos meus tempos de faculdade.
Sou formado em Direito e, da festa do canudo até hoje, já passaram 15 anos.
No início do curso, na época em que, pra mim, Direito era gente com capa de Batman gritando “Protesto, Excelência!”, tive meu primeiro contato com o Direito Processual. O distinto professor da matéria, no alto de sua erudição, resumiu a ópera da seguinte forma: “Bicho, processo é receita de bolo.”
Como poderia discutir com tão eloquente defesa desta parcela da ciência jurídica? Aceitei o ensinamento como verdade e, sem discussão, segui os estudos do processo com a fórmula culinária na cabeça.
E até dava certo. Os ingredientes estavam ali: alguém muito injuriado cochichava alguma coisa sobre alguém no ouvido do juiz e entregava uns papéis para mostrar que o papo era reto; o juiz, como quem não quer nada, chamava o cagoetado e perguntava se ele não queria falar alguma coisa; este, fulo da vida, revidava e ainda mostrava outros papéis para mostrar que o injuriado tava de zoeira; no final, o juiz dizia quem estava mentindo menos.
Tudo seguindo uma receitinha moleza, sem muito espaço para dúvida.
Segui assim até descobrir que o tal Processo era um instrumento e, como qualquer instrumento que se preze, estava ali para atender a uma finalidade.
Isso dava um ar aristocrático ao Direito Processual e você, se quisesse, poderia pagar de entendido, formulando ideias mil de como o Processo era um meio para promoção da Dona Justa. Se isso não apetecesse seu coraçãozinho, tudo bem, a receitinha estava ali. Era só usar e ser feliz.
Contudo, de uns tempos pra cá, a coisa tem degringolado um pouco. Eu olho para a receita, vejo os ingredientes, mas o resultado não bate. É como se eu colocasse farinha, ovos, leite e fermento no liquidificador, batesse por 05 minutos, derramasse tudo numa forma untada com manteiga e, depois de esperar por 50 minutos em fogo médio (pré-aquecido por 10 minutos), retirasse uma picanha maturada.
Parece nada mais fazer sentido.
Peguemos o caso do Barbudinho mais amado do Brasil. Há pouco tempo, alguém inventou ser uma boa ideia tirar o bichinho do apê em Curitiba em pleno domingo. Um outro, injuriado por terem atrapalhado o sono do encanado, mandou deixar o pobre coitado quieto. O primeiro subiu nas tamancas e mandou o segundo recolher-se à insignificância. Daí veio um terceiro, mandou todo mundo sair do play e obedecer pra não ficar de castigo.
Desde quando decisão judicial resolveu virar reunião de condomínio? E aonde estava escrito que tanta gente assim podia meter o bedelho na chave do quarto do Barbudinho?
Daí, escorregaram uns meses, e o Barbudinho, extrovertido que é, inventa de apresentar um trabalho de escola. Pra isso, levanta a mão e pede ao professor para poder falar. O professor, muito educado, deixa o danado apresentar o trabalho, sem limite de tempo.
Antes do início da explanação, ouve-se na sala um tapa na mesa. Todo mundo assustado olha para o lado e vê outro professor dizendo que naquela sala quem mandava era ele e ninguém, até depois de tocar o sino indicando o final do recreio, podia apresentar trabalho algum.
A turminha sem entender nada, vê os dois professores brigando e apontando o dedo um pra cara do outro, sem faltar com o respeito ou esquecer qualquer pronome de tratamento.
Com um pé na porta o diretor entra na sala, manda todo mundo fechar a matraca, dá um pito no primeiro professor e diz que só tem apresentação de trabalho depois da reunião na sala dos professores.
Quem manda na sala? Onde está escrito que diretor pode entrar assim e mandar todo mundo ficar quieto?
Por último, um italianinho, chegado do Barbudinho, cagoetou-o pro Serginho, CDF da tiurma. O Barbudinho ficou sabendo e mandou Serginho desembuchar tudo na hora. Este, fingindo demência, nem ligou pra gritaria rouca do cagoetado.
O assunto morreu até o dia da reunião de pais. Todo mundo junto na sala e Serginho inventa de contar tudo, ou pelo menos a parte que lhe interessava do tudo. Barbudinho exala purpurina, rodopia no salão, e pergunta para o Serginho que absurdo era aquele. E este responde, após colocar uma auréola na cabeça: “Mas foi você quem pediu para contar.”
Espera lá, mas o pedido foi para contar a fofoca só para o Barbudo. Quem mandou contar pra todo mundo, e logo na reunião de pais?
Por essas e outras que eu penso: “maldita hora que descobriram ser o Direito Processual um instrumento”.
Instrumento de quê? E para quem?
Sinto saudade do tempo em que o Processo era apenas uma receita de bolo. Ao menos naquela época, a união de farinha, ovos, leite e fermento resultava necessariamente em bolo. Hoje sai qualquer coisa.

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