CRÔNICA - MAIS UM SÍMBOLO

Mulher é assassinada a tiros.
A manchete não guarda novidades. Várias são mortas diariamente das mais variadas formas e graus de selvageria. De tão acostumados, por vezes, passamos a página do jornal, pois o título grita por si e os fatos, salvo apuro redacional do jornalista, pouco acrescentarão às centenas de predecessoras.
Mas essa mulher era diferente. Era vereadora da cidade travestida de zona de guerra.
Calhou ser negra e envolta em movimentos sociais.
De mulher passou à vereadora; de vereadora passou à vítima; de vítima passou a símbolo... e os símbolos passam a ser qualquer coisa, dependendo de quem os manipula.
Os dias seguiram e os íntimos viveram o seu luto da maneira particular e afeta a cada um. Contudo, os símbolos têm uma existência particular e a sua “vida” está atrelada ao seu uso pelas massas.
Porém, causa-me sempre uma certa melancolia testemunhar a transformação de um indivíduo em símbolo. Isso porque exclui da vida aquilo que a faz mágica e única... sua complexidade.
Todos, por mais boçais que sejamos, somos formados por uma teia de incongruências, dúvidas, méritos, falhas, etc., tão delicadamente entrelaçada, a formar um indivíduo sem comparação.
Mais que isso. Sem repetição. Eu sou único não somente pensando no passado, mas vislumbrando o futuro. Minhas condutas jamais servirão de modelo para outras pessoas. Muito embora encontre pelo caminho quem siga um ou dois passos meus, o todo será impossível. Se diverso fosse, teríamos uma perda da individualidade daquele que pretende se construir com base no meu molde.
Ao transformar um indivíduo em símbolo, porém, arrancamos o mais belo contido na sua existência. Sai a complexidade do ser falho, fraco e, por isso, lindo na sua reconstrução diária, e entra o símbolo simplório, desprovido das nuances internas que o faz único.
A casca externa, aparente, deixa de ser adjetivada como bela ou repulsiva, passando para uma qualificação baseada em uma única palavra... útil. Útil a quem se valerá do símbolo para demonstrar uma teoria, para formar opiniões, para motivar multidões.
Um novo símbolo foi criado nesta semana e sem o menor pudor, foi utilizado pela mais variada gama de indivíduos. Todos reforçando, com ele, a correção e a “verdade” de seus argumentos.
A depender do objetivo, o símbolo era moldado; transmutado em ser angelical, preenchido com a bem-aventurança guardada somente aos escolhidos e puros de coração, ou com o ar de soberba, envolto em uma manta lasciva, pronto para seduzir e destruir os presos em sua arapuca.
Perdoem-me, mas me nego a usar o símbolo. Para o bem ou para o mal, esta é uma peça que deveria estar fora do tabuleiro. Prefiro valer-me daqueles que posso encarar e testemunhar uma resposta, sincera ou não, mas uma resposta construída pela própria individualidade, a contrário desse instrumento manipulável e simplista de um ser ausente e impedido de insurgir-se.
Todos os sentidos e significados pretendidos pelos manipuladores são falhos, pois desrespeitam o básico da complexidade do ser humano. Covardes, valem-se da imagem de uma vida ceifada para fundamentar suas razões. 
Eu não conheci Marielle e jamais a conhecerei pelos símbolos criados com a sua imagem. Eles nunca conseguirão formar o mosaico da sua personalidade.
Das sobras desta tragédia, guardo apenas a manchete repetida. Mais uma mulher assassinada a tiros. Pra mim é o que basta saber.
Pra mim basta.

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