CRÔNICA - FOTOS

Começo este texto concedendo autorização expressa a todos para me chamarem de ultrapassado. Assim, deixo vocês tranquilos, livres de constrangimentos e exames de consciência posteriores.

Autorização carimbada, digo logo: tenho cisma com excesso de fotos. Sou incapaz de compreender o motivo pelo qual as pessoas precisam clicar cada milésimo de segundo de suas existências.

Não que desgoste de fotos. Pelo contrário. Acho uma invenção pra lá de útil e lanço mão dela constantemente pra registrar meus pequenos. Mas o excesso...

Sabe o que é pior nisso tudo? Pra mim as fotos estão tomando o lugar (antes insubstituível) das lembranças, ou melhor, das memórias afetivas.

Agora a coisa enroscou e você deve se perguntar: “Como uma foto, instante do tempo congelado à perfeição, pode atrapalhar a memória?”

Relaxe. Parece não fazer sentido mesmo. Eu também critiquei incontáveis vezes o raciocínio que explicarei um cadinho abaixo do texto. Porém, derrotado, rendi-me a ele. E acredite, tudo faz parte de um processo, no qual a chave principal pode ser resumida na seguinte afirmação...

Para lembrar é preciso esquecer.

Eu entendo sua vontade de parar a leitura agora, contudo, se puder me agraciar com mais um par de minutos do seu tempo, explicarei minha linha de raciocínio. Depois, os xingamentos ficam liberados.

Entretanto, já há um tempo concluí que nossas lembranças não são formadas por fatos, mas por sentimentos.

É óbvio que, no fim das contas, nossas lembranças têm uma base em acontecimentos concretos que, de alguma maneira, interferiram na nossa vida, porém, o fator determinante para grudar eternamente algo em nossas mentes é o sentimento nele envolto.

Sem o sentimento aquilo simplesmente passa, vai sendo corroído pelo tempo até se biodegradar em meio aos neurônios... talvez virando adubo para as recordações verdadeiramente importantes.

Ah, então quer dizer que os fatos carregados de sentimentos permanecem inalterados no cérebro até o nosso encontro com a caixa de compostagem eterna? Lógico que não. Eles também sofrem a ação do tempo. São corroídos, destruídos, destroçados, modificados. Tudo igual, porém, diferente.

Enquanto o simplório vira adubo e desaparece na mata neurônica, o impregnado de sentimento é podado pelo tempo, ganhando mais força dia após dia.

É um fato que nossa memória tem limites. Não somos máquinas para sofrer um upgrade de espaço interno. Portanto, o tempo caminha e os detalhes dos fatos são perdidos, pouco a pouco.

Ocorre que, esses fatos embebidos de sentimentos, são reconhecidos pelo cérebro como essenciais para nossa própria existência. Formam o caráter e nos fazem crescer como pessoas. Esquecê-los é retroceder na caminhada rumo à evolução. Isso é inadmissível para o cérebro.

Nesse instante a mágica acontece. O cérebro reconhece a inutilidade da luta contra o tempo. Os detalhes serão esquecidos aos poucos. Ele então desiste do embate e passa a trabalhar no importante, o sentir contido naquele instante.

Ao invés de conter o esquecer, o cérebro permite seu rumo natural, porém, preenche os espaços vazios com ilusões... partículas falsas coladas àquele momento, tentando impedir o desaparecimento do sentimento.

Permita-me ilustrar essa afirmação com exemplos particulares, um bom outro ruim.

Iniciando pelo ruim. Senna foi meu herói da infância. Lembro-me de cada instante do dia do seu falecimento. Onde estava quando ouvi Galvão Bueno narrar sua batida forte, minha mão tocando o portão de casa, a sensação de ter acontecido algo horrível, a roupa que estava usando, absolutamente tudo.

Agora, para aliviar, a lembrança boa. Eu presenciei o parto da minha filhota. Partejada natural. Recordo da sala do hospital, do médico conversando com a minha esposa, da dor dela em forçar o surgir da vida, da pequena brotando, do seu choro, da alegria de poder dizer o sexo dela para minha mulher (não quisemos saber o sexo antes do nascimento).

Você sabe qual é a única semelhança entre esses dois a acontecimentos tão distintos? Nenhum deles ocorreu assim. É apenas como eu me lembro.

O tempo tratou de destruir as minúcias. Se eu tivesse um retrato de cada um desses instantes, com certeza, veria que quase tudo aconteceu de outra maneira, porém, o sentimento foi preservado. E digo mais, foi ressaltado.

No afã de proteger uma memória tão cara, o cérebro remonta o quebra-cabeça de uma forma a ressaltar o sentimento. Os fatos podem ser perdidos, a emoção atrelada a eles não. O medo impõe a reconstrução constante dessas cenas para permitir a evolução. E assim, seguimos, mantidos por uma ilusão, mas imprescindível para o desenvolvimento concreto do ser humano.

Retornamos, então, às fotos. Qual a minha birra com elas?

Infelizmente, nessa vida louca, regada a cliques, estamos deixando pouco espaço para o trabalho do cérebro. Cada vez menos as memórias são apagadas e substituídas. O sentimento vem pronto e uniformemente distribuído por um conjunto de pixels à nossa disposição a qualquer momento.

Muitos dirão que isso não é necessariamente ruim. Eu concordo. Documentar um momento especial é ótimo. Mas, talvez seja desnecessário, ter 10 de cada segundo banal.

Ao termos à mão a representação literal de uma memória impedimos que o cérebro monte a lembrança da melhor forma, lapidando o recordar e deixando descansar na rede do tempo aquilo que não nos fará falta alguma. 

De minha parte posso garantir, mesmo sem uma foto desfocada sequer, lembro-me com perfeição do sentimento ao ter minha menina nos braços pela primeira vez. E, como o tempo já agiu devidamente na minha memória, a cada lembrar, esse instante é recriado. Pequenos detalhes são alterados. Novas ilusões inventadas. No final, cada rememorar se torna especial, posto ser único.

E melhor, somente meu. Pra sempre.

Foto alguma faria isso por mim.

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