Crônica - Tatuados Estamos Todos

“Aquele dentre vós que estiver sem pecado, que atire a primeira pedra.” (Jo 8 : 7)

A agulha correu nervosa pela testa do jovem, desenhando a vergonha do pecado e tornando pública sua fraqueza. A tinta misturou-se às gotas de sangue, rabiscando o escárnio merecido e guardado somente para aqueles que deveriam manter-se à margem de todos. São pragas e como tal devem ser identificadas e tratadas.

A sanha de vingança consumia o carrasco que tudo fazia com o prazer doentio garantido aos cansados de presenciarem o mal reinar. Se a batalha parece perdida e salvador algum aparecerá, pelo menos os mortais se insurgem e combatem o possível, com as próprias mãos.

O párea suplicava e chorava com a voz emplastada pela saliva grossa. As palavras desconexas faziam brotar um riso forçado na boca trêmula do carrasco. Não havia graça na cena, mas ele assim o fazia parecer, passaria um ar nefasto, faria o medo emergir ainda mais forte no coração do desgraçado. A lição jamais seria esquecida. A mão tremia, as letras tatuadas na testa lutavam para se fazer entender.

A dois metros, um terceiro, com um celular empunhado, a tudo gravava. Aproximava-se do moleque, mirava a objetiva para sua testa acompanhando o nascer das letras e o surgir da vergonha. Cada detalhe seria gravado e distribuído pelo mundo. Todos saberiam que, a partir de agora, os criminosos voltariam a ser marcados e o pecado seria um fardo por toda a vida. 

Deus que o perdoasse. O plano espiritual tem sua regras particulares. Até lá, sofreria aqui o quanto suportasse. Aprenderia a se portar como homem. Caso não o fizesse, todos que olhassem para seu rosto saberiam ter um dia falhado como tal. Seria mais um rato em meio a tantos. 

Focado em filmar a cena, o homem com o celular em nada mais pensava na maior parte do tempo. O passado, contudo, o chicoteava às vezes. O medo, a fúria, o crime, a prisão, a vergonha. Tudo se misturava e se apresentava numa única imagem desconexa, mas repleta de significado. Há alguns anos tinha cumprido pena pelo mesmo crime do jovem. 

E se, naquela época, o tivessem marcado de igual maneira?

Lógico que a representação acima feita por mim é um exercício imaginativo do que teria passado pela mente dos homens que tatuaram uma mensagem na testa de um jovem. Se este furtou ou não uma bicicleta, prefiro deixar a cargo da Justiça averiguar.

Mas fato é que a reflexão sobre os próprios atos é dádiva reservada aos mansos. Enterrado no ódio, o homem se transmuta em besta, ser irracional que tão somente atende ao instinto de vingança.

O ódio disfarçado de Justiça manteve impulsionando os homens. A estafa pela impunidade, para eles, legitimava a punição dos criminosos com as próprias mãos. Sentenciaram o jovem à pena de humilhação perpétua. A raiva dizia ser condenação justa, pois impediria a reincidência. Também ela sussurrou em seus ouvidos que se tornariam heróis, pois livravam as ruas de mais um membro dessa corja infinita.

Caso lhes fosse concedida a graça da reflexão naquele momento, saberiam que tatuados estamos todos. Dentro de nossas imperfeições, todos falhamos em algum momento. Internamente o pecado nos faz iguais. E ao decidirmos criar nossas sentenças e as implementar pela força, legitimamos todos a fazer o mesmo. Ao optar por arremessar a pedra em direção ao pecador, assim o julgando, devemos também nos curvar para o julgamento alheio, aceitando eventuais castigos por nossos erros.

Tatuados estamos todos, mas somente os cegos pelo ódio anseiam por escolher os pecadores sobre os quais descerá sua fúria, esquecendo-se que também eles poderão sofrer com a expiação de suas falhas.

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