Crônica - Invisíveis

Era porteiro de um luxuoso edifício. Em seu turno de 12 horas, permanecia enclausurado numa cabine de vidros blindados e película espessa. Ninguém o via. Os três monitores à frente lhe mostravam tudo o que fosse possível captar pelas câmeras de segurança distribuídas pelo térreo.

Por elas sabia que o Dr. Sidney, renomado cardiologista, saía pontualmente às 07h15min. De igual forma britânica, às 07h30min, o amante da Sra. Costa, esposa do Dr. Sidney, adentrava no prédio com roupa de ginástica. Assistia à Margô, empregada dos Horst, descer com o herdeiro do casal para o play e ficar, por mais de uma hora, chafurdando no celular enquanto o menino comia terra.

Observou um par de vezes a Amanda, do 420, adolescente recatada, sendo devidamente amassada pelo namorado nos cantos do corredor, próximo à porta corta-fogo. Os pais evangélicos não gostariam de saber disso. Gostariam menos ainda de saber que ela, no decorrer dos amassos, encarava lasciva a câmera de segurança.

Acompanhava diariamente o olhar de reprovação do Sr. Paschoal, funcionário público aposentado, após cruzar pelos corredores com a Dra. Cleide, promotora de justiça. Era-lhe complexo compreender como um preto podia acusar alguém de algo. Feria a ordem natural das coisas, seja lá qual fosse.

Entretanto, ninguém acompanhava sua vida. Caso um interessado o fizesse, saberia que sempre chegava para o seu turno com a roupa impecável. Camisa branca engomada, cinto de couro substituído tão logo mostrasse os primeiros sinais de desgaste, calça azul marinho com as pregas marcadas de um jeito obsessivo. Sentava-se na cadeira com a coluna ereta, contraía o abdômen protegendo a lombar e iniciava o trabalho, resumido a apertar dois botões, um para abrir o portão  dos visitantes ou outro para entrada da garagem, interfonar para os apartamentos avisando da chegada de um conhecido, acompanhar as câmeras de segurança imóveis espalhadas pelo térreo e mexer, volta e meia, no joystick da câmera frontal do prédio, por onde podia acompanhar toda a movimentação da rua, inclusive aplicando um zoom de 100 vezes na imagem.

Durante o dia, pouco dialogava com outros. Restringia-se a um “olá” para o Ricardo, porteiro do turno da noite, e às informações padrão interfonadas para os apartamentos. “Bom dia, aqui é da portaria, gostaria de avisar que o carteiro tem uma encomenda para o Sr. Edgar”, tudo muito formal. Nunca lhe perguntavam o nome, ninguém olhava para a cabine (se olhassem, nada veriam), poucos devolviam um “obrigado” forçado que, se não dito, falta alguma faria.

Por vezes, perguntava-se o motivo de ir ao trabalho tão bem arrumado, por que mantinha a postura durante todo o dia e qual o sentido de seguir uma dieta com muita verdura e pouco sabor para sustentar uma forma invisível a todos. Ainda assim o fazia. Como se uma força o impelisse. 

Certo dia, após as conferências de segurança rotineiras, liberou a entrada do amante da Sra. Costa e passou a acompanhar o movimento da rua. Percebeu um bêbado ziguezagueando pela praça em frente ao edifício e, na falta de outra ocupação urgente, decidiu acompanhá-lo. Seu pai alcoólatra o tinha feito odiar bebidas. O distanciamento do álcool lhe orgulhava, fazendo questão de anunciar a todos os conhecidos. Proferia com satisfação um “obrigado, mas não bebo” toda vez que lhe ofereciam um gole numa festa ou bar.

Com uma raiva invisível seguiu o caminhar trôpego do homem até uma castanheira antiga, na parte central da praça. Nela o bêbado maltrapilho se apoiou, olhou para os lados, estufou o peito em um arroto forte e vomitou um líquido vermelho na terra. Os respingos salpicaram sua calça e as raízes da planta.

O antebraço queimado pelo Sol correu pela boca, limpando o pouco do líquido que escorrera a caminho do queixo. Deixou a árvore, andou mais alguns poucos metros e abaixou-se num movimento sofrido. Estava ofegante. Sentou-se, tornou a olhar para os lados e, sem forças, deitou no chão.

“Cambada de imprestáveis!” Proferiu em alto e bom som, ciente de estar imune a julgamentos moralistas na cabine. Passava pouco das 8 da manhã e resolveu deixar o bêbado em seu sono pesado. Precisava conferir o restante do térreo.

Por volta do meio dia, enquanto almoçava, tornou a verificar o manguaceiro. Girou a câmera e constatou estar no mesmo local. “Caralho! Por que a Prefeitura não faz nada para dar um fim nessas pragas.” Por questão de segurança, aplicou um zoom para conferir o rosto do vagabundo. Poderia avisar a polícia caso o visse bisbilhotando o edifício no futuro.

Infelizmente, o rosto pendia para o lado oposto ao do prédio, impossibilitando a identificação. Ainda assim, manteve a câmera por uns instantes na figura imóvel. Depois de um tempo percebeu... ele não respirava. Estava morto.

O porteiro cravou os olhos no monitor por longos 15 minutos. Tinha certeza. O peito não mexia um centímetro sequer.

Pegou o telefone de pronto e começou a discar para o 190. Parou antes de teclar o último número. “Por quanto tempo esse cara está aí morto? Ninguém percebeu?” A praça recebia a quantidade rotineira de pessoas. A semana pouco passara de seu meridiano e o local era utilizado por muitos. Além de contar com um mirrado espaço com areia para as crianças.

Sem compreender o motivo, baixou o telefone no gancho e apoiou as costas na cadeira. Afastou um pouco o zoom da imagem, de modo a ver melhor a movimentação em torno do defunto.

Passada mais de uma hora, vários cruzaram o caminho do homem e quase ninguém o olhou, os que fizeram tinham na face um ar de repulsa, não por sua condição atual, pois sequer notaram a ausência de vida, mas pela existência contaminada pelo álcool. Assim como o porteiro há pouco.

Duas da tarde. “Será que ninguém vê o sujeito?”. A vida seguia contornando o obstáculo imóvel sem perturbações. A praça começava a se encher com as babás dos prédios vizinhos, desprovidos de playground. Dentro da guarita o suor percorria a testa. Olhou o controle do ar condicionado e reduziu a temperatura em 2 graus.

Enquanto as crianças brincavam na terra, corriam entre os brinquedos e caçavam insetos pelo chão, as babás estavam entretidas com os telefones, pouco vendo ao redor. Quando uma bola quicou para perto do corpo, o coração do porteiro apertou-se. A criança correu para pegá-la, mas foi segura antes que chegasse próxima ao defunto. Uma babá esbaforida agarrou-a pelo braço e a devolveu para o parquinho. Juntou-se a três outras empregadas e ficaram por alguns minutos fofocando e fitando o ex-bêbado com as bocas retorcidas de raiva. Ninguém, porém, ensaiou perceber o óbito.

Parou por um instante para pensar se também a sua atitude estaria equivocada. Afinal, sabia do falecimento do sujeito; bastava ligar para as autoridades e o retirariam dali. Seria um ato de misericórdia e evitaria essa humilhação derradeira. Por outro lado, era impossível observar o bêbado sem refletir na própria situação. Também ele se sentia invisível para todos ali no edifício. Entrava e saía do trabalho não trocando uma palavra com morador algum, fora os casos no qual cumpria o seu dever: apertar botões, anunciar chegadas, comunicar incidentes... além disso, poucos sabiam da sua existência.

Se também ele morresse durante o trabalho, quanto tempo levaria para descobrirem o seu falecimento? Teria de esperar a troca de turno? Se isso acontecesse, provavelmente colocariam outro funcionário no lugar e o prédio seguiria seu curso natural desconsiderando sua ausência, até porque ele era apenas uma cabine, um objeto a serviço dos moradores. 

O dia caminhava rumo ao crepúsculo e as pessoas persistiam a margear o homem. Os que o olhavam, saíam sacudindo a cabeça em desaprovação, provavelmente o insultando internamente.

Às 17h o pescoço e os ombros do porteiro queimavam, o cinto lhe apertava a barriga. Puxou a camisa branca suada, tirando-a de dentro da calça. Seu turno terminaria em uma hora. Como já vira o suficiente, pegou o telefone e discou 190. A conversa com a atendente demorou pouco mais de dois minutos. A polícia e o resgate do Corpo de Bombeiros estacionaram na praça vinte minutos depois.

Um socorrista ajoelhou ao lado do homem, chamou-o duas vezes, tocou-lhe o pescoço e, tornando o rosto para o companheiro, fez um leve sinal positivo. Com as autoridades próximas, as pessoas começaram a aglomerar-se em torno da cena. Celulares eram sacados e, em um burburinho coletivo, a notícia espalhou-se em segundos.

Batidas na porta da cabine indicaram o fim do turno. Saiu, cumprimentou Ricardo como de costume, pouco se importando com o olhar curioso deste, que não entendeu o motivo de estar suado e com as roupas sem o padrão costumeiro.

“O ar quebrou?”

“Não. Eu que estou meio mal hoje. Deixa eu ir. Falou.”

Atravessou a rua e cumprimentou o policial.

“ E aí? Quem era o cara?”

“Vai saber. Tá sem documento. Esses vagabundos filhos duma puta estão empestiando a cidade. Tá foda ficar perto com esse cheiro de cachaça.”

“Entendo. Vocês vão fazer o o quê, então?”

“Rapaz, tem muito pra fazer não. Já chamei o rabecão. Ele vai pro IML e depois enterra como indigente. Ninguém vai reclamar esse corpo aí e eu é que não vou perder tempo procurando parente de vagabundo. Sinceramente, esse daí só fazia peso na Terra.” Disse satisfeito com a tirada que, no próprio entender, era repleta de bom humor. O porteiro colocou uma máscara para acompanhar o policial, mesmo tendo sentimentos bem diversos colidindo em sua mente.

“Valeu, então. Bom trabalho aí. Até.” Falou o porteiro entregando de volta o humor para o policial. Ele o aproveitaria muito mais. Preferia caminhar para casa sem o peso dessa comédia trágica.

Durante o trajeto pensou em quem seria aquele homem. Recriminou-se por julga-lo de pronto, tachando-o de vagabundo sem ao menos tentar encontrar os motivos pelos quais tinha atingido essa situação limite. “Poderia sim ser um vagabundo, um encostado, mas eu não sei e jamais saberei. E se não fosse dessa maneira? A rua poderia ter sido a última saída para uma vida problemática.” 

Tais ideias rondavam sua cabeça, martirizando-o. A vida daquela criatura estava perdida e ele viveu seus últimos instantes como um ninguém, morrendo como tal. A sociedade seguiu seu rumo, pouco desviando da sua presença insignificante. Sentiu-se novamente invisível, um irrelevante para todos daquele edifício. O homem agora tinha sido rebaixado ao posto de indigente, ser-lhe-ia atribuído um número e em sua cova, uma cruz seria pregada, sem nomes, sem passado, sem herdeiros. Seu coração apertou-se e o porteiro sentiu-se pequeno.

Atingiu sua casa com as pernas cansadas e nódulos nos ombros. Abriu a porta e foi recebido pelo sorriso da esposa. Ela agarrou-lhe o pescoço e o encheu de informações sobre o dia agitado. Sem que ele percebesse, ela o completou também com vida. Antes de finalizar o jantar, sentia-se novo. Sentia-se alguém de novo.

Sua rotina veio chamar à porta de manhã, ao que atendeu de bom grado. A história do bêbado logo deixou a superfície da mente, mas seu interior jamais foi o mesmo. O futuro transformou-se em uma pasta disforme quando, passadas duas semanas, sua esposa descobriu a vida sendo renovada em seu ventre.

No prédio, permaneceu invisível, mas este fato deixou de importar.

E, caso isso seja de alguma relevância para você, ele se chama Jorge.

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