Crônica - Ficção e Realidade

Outra criança morreu. Tinha 2 anos e seu nome era Fabiane. O assassino, seu padrasto, antes de lhe arrancar a vida, a torturou e estuprou. Por uma coincidência macabra, o crime ocorreu no dia 18 de maio, reservado para nos lembrar da bestialidade humana; da nossa capacidade de explorar crianças sexualmente.

Soube da morte da infante, porém, somente após a prisão do carrasco. Em mais uma brincadeira do destino, o padrasto foi pego ao tentar se esconder numa caçamba, em meio ao lixo, aos restos.

Em paralelo, uma notícia chamou a atenção de muitos. Um livro distribuído nas escolas pelo MEC para crianças de 6 a 8 anos possuía um conto no qual um pai, arrebatado por uma paixão doentia pela filha, a pede em casamento e, ante a recusa, aplica-lhe uma punição: prisão nas torres do castelo. Caso a mãe ou as duas outras filhas a ajudassem de alguma forma, morreriam. 

Muitos discordaram do governo. O livro estaria fomentando a pedofilia.

Um livro tem esse poder? Poderia ele formar um pedófilo? Como se forma um pedófilo? Existe causa única? Seria ele criminoso ou doente? Em sendo um doente, um desequilibrado mental, sua balança pendeu para a sandice por carga genética ou devido a fatores externos, durante a vida? Teria sido moldado pela sociedade? Se assim ocorreu, em que ponto da vida houve o desvio na curva do crescimento moral, desvirtuando-o?

Sou pai e, por isso, queria ter as respostas para essas perguntas. Elas, porém, não só me faltam, como duvido que sejam obtidas em um futuro próximo.

Resta a mim carregar o medo. Incomodado por seu peso, agarro-me à insegurança e tento blindar meus filhos como posso. Incuto neles também o medo... pela tangente falo sobre os perigos da selva além da porta de casa.

Emergindo a notícia sobre tal livro, na timeline do meu Facebook alguns pais mostraram-se preocupados com a ideia de passar para os pequenos a sensação de normalidade na pedofilia e no incesto.

Corri os olhos sobre a reportagem, comentários dos semeadores da notícia no Facebook, mas usei de cautela ao ler o conto para evitar condenações precipitadas. Mas sou pai e, portanto, especialista em condenações antecipadas. Era absurdo distribuir este tipo de material para aquela faixa etária. 

Nem de longe pensei na hipótese do livro ser recolhido ou de censurar seu conteúdo. Como manifestação artística, sua divulgação deve ser garantida, contudo, os leitores que o receberiam nas escolas ainda portam uma imaturidade inadequada para o conteúdo do material impresso. 

A semana transcorreu e na sexta, dia 02/06, enquanto assistia o jornal na TV, voltou à tona o assassinato de Fabiane. Revolveu-se o tema em detalhes, quem matou, a maneira como fez, como foi preso, mas acrescentou a detenção da mãe, suspeita de proteger o assassino. 

Somente ao final notei meu filho, que a tudo assistiu muito atento. Com 6 anos, desconhece o conceito de estupro, mas compreende perfeitamente que o padrasto matou a enteada com o conhecimento da mãe.

Voltei meus pensamentos aos comentários do Facebook a respeito do conto com tentativa de casamento incestuoso. Neles diziam: “cuidado com o que estão tentando incutir na cabeça das crianças”, ou ainda “se na história existe isso, pode achar que é uma coisa normal”. 

Li o conto e posso dizer com certeza que entre o escrito no livro e o dito na televisão (pouco após o crepúsculo), esta foi muito mais explícita e dura. 

Mas, se expor o assunto de forma direta e cruel para as crianças, elas podem ver o incesto ou a pedofilia como algo normal, também falhei como pai. Expus meu filho a uma situação de risco. Ao ver a notícia, ele pode entender como aceitável estuprar, torturar, matar, etc.

Mantenho a posição e vejo as crianças ainda imaturas para lidar com o tema proposto pelo conto, porém, no tsunami comunicativo da atualidade, onde as notícias, informações e teorias (conspiratórias ou não) vêm de toda parte ao longo do dia, a atenção dos pais deve ser muito mais ampla que os muros da escola, dentro do qual os pequenos permanecem por 4 horas. No restante do tempo estão debaixo de nossas asas e, neste instante, a responsabilidade recai sobre nós.

Inconformados, denunciamos a conduta equivocada do governo, mas temos plena ciência do acessado pelos filhos enquanto permanecem conosco?

Não raro se vê o smartphone alçado à categoria de babá, convenientemente sacado quando os pais, cansados, resolvem repousar num lago de tranquilidade e silêncio. Ocorre que uma grande parcela deixam essa babá hi-tech cuidar das crianças sem supervisão, desprezando o seu potencial de se tornar uma caixa de pandora. 

Os perigos do excesso de informação são evidentes e os estudos sobre o tema avançam a passos largos, sempre denunciando um futuro sombrio. De igual maneira, ao banalizar a violência podemos criar uma geração insensível ou emocionalmente desconectada com o entorno social. 

Na infância, a mente é esponjosa e absorve tudo ao redor com a sede de quem se delicia num oásis após muito vagar no deserto. O que apresentamos, de bom ou ruim, será incorporado na construção do futuro adulto. Não só o transmitido pelas escolas, mas também o ofertado dentro dos muros das próprias casas.

Outra criança morreu. Ficção e realidade tornam a se misturar. Até quando?

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