Crônica - Isso importa?

Como sempre faço, outro dia, após deixar os pequenos na escola, retornei para casa e fui tomar meu café assistindo televisão. É um maldito costume que adoro manter. Como todo bom costume, faz mal e, mesmo assim, faço com um prazer transgressor delicioso.

Os leds da TV fizeram o seu trabalho no meio de uma matéria policial. Não entendi bulhufas do antecedente às imagens, mas o visto bastou. Dois homens deitados no chão com as mãos na cabeça. Um deles levanta o rosto e logo o tomba sem cerimônia, derrubado por dois tiros de fuzil, dados à queima-roupa. O outro nem essa reação teve, morreu sem lhe ser dada a chance de rogar pela vida.

A reportagem disse (e eu não duvidei): quem matou era policial, quem morreu era bandido.

Olhei para minha comida e permiti ao dia seguir seu curso natural. Seria ilógico dizer que o alimento perdeu o sabor; até onde vão meus conhecimentos alimentícios, granola parou de dar a mínima para a sociedade faz tempo e, de forma alguma, deixaria de ofertar o sabor padrão pela morte de dois indivíduos. Todavia, confesso ter ingerido aquele mix de alpistes saborosos sem perceber que o eram.

No outro dia, a mesma rotina e idênticos malditos costumes (todo homem de rotina preza por seus malditos costumes).

A TV, porém, encontrava-se mais amistosa e, durante a granola, ofertou-me conhecimentos sobre o preço do abacate (fruta que me fez lembrar o quanto a granola estava saborosa, especialmente pela sua ausência).

Antes do final do desjejum, outra reportagem picada pela minha mente entretida pelo saciar da fome. Uma jovem morta dentro da escola. Policiais e bandidos cumpriam seu dever cívico de trocar tiros ao léu na rua e uma bala encontrou a garota.

Continuei a missão matinal e terminei o café, novamente sem prazer e novamente amaldiçoando os costumes que servem somente para nos conferir a ciência plena de sua inutilidade.

Os fatos narrados acima, apesar de amparados pela tragédia, são um resumo raso do visto diariamente nos jornais. Neles, nada de novo, ao menos para mim.

A novidade ocorreu poucos dias após.

Mantendo outro hábito infeliz, rolei descaradamente a timeline do facebook sem pena por um bom tempo, tentando encontrar algo diferente de receitas do tastemade, fotos de gatos e de pessoas, nas mais variadas poses, mostrando o dedo médio para mim.

Parei em uma postagem com a imagem dos policiais dando cabo dos bandidos deitados.

O escritor do post eu desconheço, mas a pessoa que clicou no compartilhar e lançou o post na minha timeline sim.

Em linhas gerais, o dono da postagem lançava uma praga sobre a imprensa, pois esta condenava os policiais pela morte dos bandidos. Visto que, se as balas, desafiando as leis da física, fizessem o caminho inverso e arremessasse a óbito os PMs, nada seria divulgado nos meios de comunicação.

O que perambulou na minha cabeça naquele momento foi uma pergunta apenas: “Isso importa?”.

É realmente importante saber quem matou e quem morreu? Faz alguma diferença?

De onde eu estava, apenas um dado era relevante: dois seres humanos, empunharam armas e dragaram a vida de outros dois que estavam indefesos e rendidos no chão. Pergunto: faz diferença saber quem estava do lado certo da arma? Ou melhor, existe este lado certo?

Duas pessoas morreram. Ponto. As homicidas cumpriram seus papéis com louvor, com suas vítimas em posição de total submissão. Ponto.

Minha vida rolou um pouco mais e, cambalhoteando pela timeline do facebook outra vez, encontrei a foto da jovem morta na escola. Ao lado, um conjunto de pixels mostrava a mesma menina, ainda gozando de sua vida, com um largo sorriso no rosto e pouquíssimo tecido cobrindo o corpo.

Quem postou as fotos lançou dúvidas sobre a integridade moral da menina (e faço questão do “menina”, pois ela era menor de idade, entre seus 13 ou 14 anos), pelo fato de frequentar bailes funk e ser conhecida de traficantes da região.

Não me perguntem como o araponga tinha essas informações, mas ele as garantia. E se está no facebook, deve ser verdade, correto?

Mas se sintam à vontade para me perguntar: “Isso importa?”.

Qual a relevância da menina frequentar bailes funk e conhecer traficantes? Caso isso seja verdade, apenas poderíamos questionar seu gosto musical e suas amizades. Contudo, a tragédia tem um ponto final com o parar do seu coração.

Entretanto, parece que na sociedade atual as tragédias possuem epílogos. Vários são os indivíduos a preencherem o restante da história (seja calcada na verdade seja inventada mesmo), na tentativa desesperada de justificar suas ideologias e desqualificar o fato trágico para algo aceitável.

Quando eu ostentava uma idade com menos múltiplos de 4, carregava na mochila uma inocência (na época garantida por mim ser cheia de pessimismo), na qual o ser humano estava se tornando insensível para os fatos grotescos do cotidiano. Isso deixava minha mente zonza e com nojo da sociedade.

Agora me deparo com uma situação bem pior. As pessoas não se tornaram insensíveis. Pelo contrário, o sentimento está à flor-da-pele. Porém, ele vem carregado com um desejo de vingança que desqualifica as tragédias como tais e as elevam ao status de vingança social.

E pior, uma vingança boa, como se Justiça tivesse sido feita.

Vingança e Justiça deveriam ser proibidas de figurar na mesma frase. Seria prudente guardar ao menos um parágrafo de distância, assim, a primeira seria impedida de contaminar a segunda.

Contudo, dia após dia vejo e sinto a convivência afetiva delas. Entrando quase num casamento harmônico, pouco se distingue os conceitos de ambas atualmente, ou quando há uma distinção, uma se torna o caminho para a efetivação da outra.

E eu continuo mantendo meu costume infeliz de tomar café da manhã assistindo o jornal. Minha granola persiste com gosto. Eu mantenho sem sentir seu sabor. As pessoas prosseguem na justificação das tragédias. E no meio de tantas mortes explicadas com razoabilidade doentia, a única pergunta que transita na minha cabeça é: “Isso importa?”

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