Crônica - Dignificar o Trabalho
O que te move? O que te faz levantar todos os dias? O que te levou a escolher a sua profissão?
Estão todos sumariamente autorizados a me denominar de saudosista, mas começo a sentir saudade da época na qual se proferia com um orgulho altivo: “o trabalho dignifica o homem”.
Minha visão temporal pode estar equivocada, coisa a ocorrer com uma frequência incômoda, porém, parece-me que em tempos outros as pessoas olhavam o trabalho com uma satisfação genuína, como quem ostentava um troféu. Partia-se para o batente sabendo estar ali uma missão, dura um par de vezes, mas a ser cumprida com prazer.
O labor era pesado e grande parte dos homens e mulheres eram tolhidos do seu direito de escolher sua sina até o final da vida. Iniciava-se um trabalho na roça sabendo ser ele seu companheiro perpétuo. Inexistia a escolha por aquele caminho. Este era herdado pela genética e deveria ser continuado com igual rigor e cuidado.
Ingressava-se em uma empresa para realizar determinada função, pois poucas eram as opções disponíveis, e ali estacionava até o tilintar da aposentadoria. Descanso minguado, para quem muito oferecia a todos.
Pode parecer triste. Mas eles, os integrantes desses tempos mortos, tinham visão distinta. Mesmo sem escolher o ofício, era importante tê-lo. Havia dignidade em desempenhar uma função, qual fosse ela.
Como disse, contudo, esses são tempos mortos. Vivemos hoje uma época de indivíduos que tudo podem escolher, mas nada querem. Ou quando querem não encontram na profissão, mas no além dela.
Um ofício é escolhido por sua retribuição material ou pelo status conferido, mas raras são as oportunidades na qual se faz o desejado pelo simples prazer de desempenhar o trabalho.
Ele parou de dignificar o homem e hoje o oprime, causa-lhe problemas psiquiátricos, cansaço, ansiedade, estresse, pânico. À deriva nessa tempestade de transtornos existem, porém, três respiros: finais de semana, feriados e férias.
Keep Calm and Sexta é Logo Ali.
A única alegria presente na segunda-feira é a ciência robusta de estar próxima a sexta-feira, com seu frescor libertador.
São cinco dias de sofrimento para dois de alegria. Por toda a vida. Isso me parece triste.
Mas por quê? Diferente de outrora, temos um leque quase infinito de possibilidades e escolhemos uma incapaz de nos dar prazer. Aparentemente nenhuma opção ofertará o prazer procurado, pois se criou a ideia do trabalho como fardo, estando a felicidade sempre em outro local, no qual se pode chegar com facilidade, dependendo do limite do cartão de crédito.
Essas ideias perambulam pela minha cabeça volta e meia. Deveriam perambular menos, mas há muito deixei de tentar domá-las... são teimosas demais. Contudo, passaram martelar com força e precisão revigoradas depois de uma imagem vista na imprensa.
Um grupo de homens feitos, mais feitos do que homens, diga-se de passagem, às portas de concluir o curso de medicina, trajando belos jalecos brancos, tiraram uma foto na qual estão com suas calças arriadas até as canelas e, na frente de seus respectivos membros (graças a Deus cobertos pelos jalecos brancos), fazem, com as mãos, um sinal imitando a genitália feminina.
Numa das fotos, um vindouro doutor, talha a rashtag #pintonervoso.
Quando Hipócrates, pra base de uns 2.400 anos atrás, elaborou o hoje utilizado juramento dos médicos, reputo como improvável ter zanzado por sua cabeça que seria ele proferido por alguém auto-intitulado #pintonervoso. Posto ter escrito ele, “conservarei imaculada minha vida e minha arte”.
Estou sempre aberto a críticas, mas do pedestal onde me encontro sentado, parece-me que estes “homens feitos” estão falhando miseravelmente no objetivo de conservar imaculada a vida e muito menos o ofício da medicina.
O que nos impõe um rewind no texto para realizar uma reflexão: terão eles escolhido a arte da medicina pelo prazer de zelar pela vida do próximo, ou melhor, encontrando a felicidade no exercício desse trabalho ou este é somente um trampolim (bem caro, por sinal) para adquirir a felicidade?
Analisando somente a foto divulgada na imprensa e aí correndo um delicioso risco de cometer um julgamento precipitado, poderia citar uma ou duas profissões onde arriar as calças e se autodenominar #pintonervoso seriam bem mais condizentes que a arte do médico.
O trabalho precisa dignificar o homem. Não pelo status conferido ou pelos carimbos no passaporte que possa proporcionar, mas o mero e singelo exercício do labor deve ser motivo de orgulho.
Porque iniciar uma segunda com a angústia de somente se dar o direito de ser feliz na sexta é um fardo pesado demais para qualquer um suportar. Décadas vividas nesse ritmo funesto corroerá o indivíduo por dentro e fará o pinto não só ficar nervoso, mas entrar em colapso total, levando consigo todo o pacote a ele apensado.
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