Conto - Lembranças

Era outubro, mas o calor da primavera ainda não vencera o inverno rigoroso. Todas as plantas que envolviam a casa simples traziam em seus corpos as marcas gélidas de um orvalho intenso da noite recém afugentada pelos primeiros raios de Sol.

Dentro da residência o silêncio reinava quase absoluto; era combatido somente por alguns passos arrastados. No corredor, um casal de idosos seguia de braços dados rumo à sala. Uma terceira pessoa os seguia desinteressada.

– Seu José, pode deixar que eu levo a Dona Maria para a sala. O senhor não pode se esforçar assim. – A enfermeira fingia preocupação. Cuidar de um casal de velhos não era um emprego ruim, mas ser obrigada a acordar em um domingo antes das oito horas da manhã era motivo suficiente para amaldiçoar a família inteira dos patrões.

– Arre! Já disse que eu levo ela. Teimosia besta! – Resmungou o velho com a voz rouca. Enquanto sua mão esquerda tateava a parede de madeira buscando um equilíbrio perdido há algum tempo, o braço direito, flexionado num ângulo de noventa graus, amparava a mulher que depositava nele o peso do próprio corpo, já que suas pernas não tinham mais condições de realizar o serviço. As mãos dela começavam a se esquentar, após a noite gelada, com o sangue correndo sem pressa pelas pontas dos dedos, que agora se entrelaçavam com os do marido. Infelizmente, não podia sentir esse calor atravessando-lhe o lado direito do corpo; uma veia rompida no cérebro tratou de impedir qualquer sensibilidade “ao leste do nariz”, como costumava dizer.

– Estou sentindo uma bezerrinha bufar aí atrás. – Comentou ela com um sorriso torto na boca. – Não para não. Assim eu esquento um pouco os ossos. A dor nas minhas costas até parou. Você podia fazer isso outras vezes, Margarida.

– E vou fazer mesmo, se o Seu José não me deixar fazer o serviço.

– Para logo com isso, não quero conversa. Já disse que eu levo ela para a sala. – José não podia se dar ao luxo de discutir no momento. Amparar a mulher vinha se tornando uma atividade cada dia mais difícil. Nunca precisara tanto de sua mão esquerda apoiando na parede.

– Isso mesmo meu velho, me segura, vai que eu caio em cima de um menininho por aí? Ai ai! Ia ser difícil me tirar de cima dele. – O riso estridente dela encheu o corredor que, por um instante, pareceu mais iluminado. Margarida não queria, mas foi obrigada a sorrir também.

– Larga de ser assanhada mulher. Estamos indo ver a missa. Respeito!

O casal seguiu até a sala; seus pés envoltos por meias grossas e encravados em chinelos de borracha eram arrastados pelo assoalho de madeira, provocando um som abafado e calmo.

Na sala, bem iluminada por uma grande janela aberta à esquerda, que permitia alguns convidativos raios matutinos entrarem, o trabalho de colocar Maria em sua cadeira demorou quase três minutos. Seu lado direito não mais respondia aos seus comandos e uma queda fizeram um estrago considerável em sua coluna. Sentar causava-lhe dor. Assim, como andar, como deitar...

– Ai meu velho! Já foi muito mais gostoso sentar nas coisas. Hoje parece que meu bumbum vai queimar!

– Meu Jesus, Maria! Quieta esse facho senão sua bunda vai doer dos tapas que vou te dar.

Ela passou a mão na cabeça do marido, olhou de lado para Margarida e continuou falando com o sorriso estampado no rosto: – Tá vendo menina? É assim que homem segura um casamento. Se o marido não dá uns tapas no bumbum da mulher de vez em quando, ela vai achar um menininho por aí que dê.

– Pelo amor de Deus Dona Maria! Vai deixar Seu José doido! – Margarida tentava chamar-lhe a atenção, mas a frase saía entrecortada com os risos incontidos e todo o efeito da reprimenda se perdeu.

– Arre! Bendito dia que meu pai foi cobrar aquela dívida do seu e acabou recebendo você para casar comigo! Margarida, liga logo a televisão.

A enfermeira, tentando conter o riso, virou-se para o aparelho, uma velha TV Philco, cor vermelha, que o casal ganhara há muitos anos de um filho. Ao ligar, um leve ruido foi gerado e após um brilhareco, a imagem chuviscada apareceu na tela. Girando o dial do aparelho, encontrou a emissora que transmitiria a missa dominical. A imagem era fraca, um tanto azulada, e muito prejudicada pelos chuviscos provocados pelo equipamento antigo.

– Eu vou lá na cozinha, porque o pessoal já deve estar chegando. Qualquer problema é só me chamar. – Antes de sair pela porta de acesso ao corredor, parou o passo de forma abrupta e dirigiu-se ao casal: – Ah! E parabéns para vocês!

– Obrigado, minha querida.

José olhava fixo para as imagens distorcidas dos preparativos para a cerimônia do corpo de Cristo. Há muito seus óculos não mais resolviam seu problema de visão, então preferia enxergar a televisão por cima deles. Angulava a cabeça de um jeito que os óculos transformavam-se em mero enfeite em seu rosto. Deixou alguns segundos passassem até sentir-se sozinho novamente com a esposa.

– Parabéns por quê?

Ela virou-se para o marido, segurou sua mão direita. Pôde sentir a pele grossa de seus dedos. A mão ainda era firme e com a pele grossa; evidentemente, não possuía mais a força para agarrar uma saca de café morro acima ou deitar um boi “na unha”, como fazia na época de veterinário prático, mas ela ainda guardava as memórias da força juvenil. Infelizmente, não se podia dizer o mesmo de sua memória.

– Hoje é nosso aniversário de casamento. Lá se vão 65 anos.

Ele permaneceu com o olhar fixo na televisão. Agora o celebrante, ao som do cântico inicial, postava-se diante do altar para iniciar a missa. Há algum tempo não se espantava mais com seus lapsos de memória; encarava tudo com a frieza de quem sabe não ser possível corrigir o que está errado. Por mais que pretendesse, grande parte de seu passado estava perdido em um canto desativado de sua mente. O sumiço da maior parte da sua história, o fez também mudar de comportamento; não era mais o homem ativo do passado que vivia na roça trabalhando ou no boteco conversando com os amigos, hoje preferia permanecer em casa todo o tempo; era melhor evitar o constrangimento de ser cumprimentado por uma legião de desconhecidos na rua. Todos diziam seu nome, com aquele olhar de pena que lhe causava repulsa. Não conhecia ninguém, não sabia como conversar com essas pessoas. O que diria? Eram estranhos. Melhor ficar em casa com a esposa. Ao menos este era um rosto familiar.

Da cozinha vinha um som que preencheu a sala. Risos e gritos de surpresa pareciam intermináveis. Não se podia compreender o que se dizia no outro cômodo; todos falavam juntos, berravam como se tentassem impedir um enforcamento.

– Diacho! Quem é que está gritando desse jeito? Não consigo ouvir a missa.

– Calma véio. Nossos filhos estão chegando para o almoço. Todos vão vir para o nosso aniversário de casamento.

– E precisam se esgoelar assim? Devem ser nossos filhos mesmos, os gritos deles são iguais aos seus.

– Agora está fazendo piadas também? – Ela ria da raiva do marido. Adorava vê-lo nervoso. – Sabe que você fica ainda mais bonito rindo?

– Você está com catarata, até um pé de jaca é bonito para você. – Retrucava ele em vão. Ela continuava rindo sem parar. Para José, Maria continuaria rindo até depois da morte. Às vezes, a invejava por isso... às vezes.

O assoalho rangeu pesaroso anunciando a entrada de um homem alto, com barba por fazer e uma barriga que denunciava o sedentarismo crônico. Maria não pôde ver sua entrada, pois seu pescoço não obedecia a qualquer comando que mandasse sua cabeça virar para o lado direito.

– Sua benção! – O homem abaixou e beijou-a na testa de forma carinhosa. Em resposta recebeu um “Deus te abençoe”.

– Oi pai! Tudo bom? Sua benção! – Estendeu a mão para José, que cravou o olhar no homem corpulento que se dizia seu filho e pedia a benção. Não lhe ocorria quem poderia ser. Estendeu a mão e abençoou de maneira protocolar o desconhecido. Estava se acostumando a abençoar estranhos.

A conversa que se seguiu foi, para José, como um sonho. Um sonho como tantos outros que permeavam sua vida há anos. Escolheu o silêncio. Manteve o olhar direcionado para a televisão, mas não fazia ideia do que o padre pronunciava. Fingia prestar atenção no sacerdote, tentando compreender alguns dos fatos recordados pela esposa e pelo suposto filho. Nenhum nome pronunciado atiçava sua mente; nada daquela conversa parecia fazer parte da sua vida.

Alguns poucos minutos se passaram e o homem se despediu do casal. Iria se encontrar com os irmãos na cozinha, havia muito o que preparar. Despediu-se da mãe com um beijo na testa. Acenou a cabeça para José, um tanto encabulado.

– Você se lembrou dele José?

– Sabe que não. Por que pergunta? – O rosto cansado era um reflexo da raiva interna por não se lembrar dos fatos mais banais de seu passado. Considerava-se um imbecil pela incapacidade de recordar dos próprios filhos.

– Esse é o Orlando. Hoje ele tem 47 anos. Pra você, quantos anos ele tinha ainda?

– Nossa, tudo isso? – José encarava a idade do filho com tristeza, não com espanto. – Lembro dele com 15. Meu Deus! Quanto eu perdi? – Gostaria de chorar, mas nenhuma emoção mais forte era gerada da constatação de que perdera mais de 30 anos da vida de seu filho. Causava-lhe muito mais angústia pensar que podia ter chorado por este fato incontáveis vezes, mas não se lembraria de nenhuma delas.

Maria sabia o que José sentia, convivia com o sofrimento do marido todos os dias, mas não conseguia se colocar no lugar dele. Sua mente, ao contrário, não a deixava quieta um segundo sequer. A todo o momento, pensamentos diversos explodiam em sua frente, fazendo desejar esquecer de tudo. Gostaria de um pouco de silêncio. Muita coisa vivida seria melhor que caísse no esquecimento.

Nesses momentos de fraqueza, onde a fuga parecia a melhor solução, olhava para a fisionomia perdida do marido, amaldiçoava o próprio egoísmo e agradecia aos Céus por ter a mente perfeita. Concluía que o tagarelar da sua mente era infinitamente melhor do viver no silêncio constrangedor do esposo.

– Não se preocupe meu velho. – Dizia carinhosa, roçando os dedos da mão esquerda no braço do marido.

– Não me preocupo. Não vou lembrar disso mesmo! – Maria sabia que o marido tinha razão; em cinco minutos a conversa com o filho escorreria por sua cabeça, desaparecendo por completo. Ela, pelo contrário, teria as palavras de José martelando na sua mente por muito tempo ainda.

Outros filhos e netos apareceram na sala. Maria conversou e brincou com todos. Alguns dos presente tinham os olhos mareados com os risos soltos provocados pela boca abençoada da mulher que mal podia mexer o próprio corpo naquela cadeira acolchoada. José permanecia inerte. Cabeça baixa, olhos por cima dos óculos, vez por outra murmurava palavras desconexas que nem ele próprio entendia. Aparentemente a missa entrara na primeira das três leituras dominicais, mas a passagem era o menos importante no momento. Seus olhos corriam medrosos cada um dos presentes, tentando reconhecer os rostos risonhos que se apresentavam à sua mulher. Seu cérebro informava ser a primeira vez que via aquelas pessoas... fazia tempo que considerava seu cérebro um grande mentiroso.

Quando elevava a voz a um patamar audível, de sua boca vazavam queixas e reclamações pela arruaça que o impedia de assistir a celebração do corpo de Cristo. Seus olhos percebiam que os presentes fingiam não notar sua presença, porém, quando lhe cediam um pouco de atenção era somente para transpassá-lo com olhares dúbios, carregados de medo ou indiferença. Às vezes pereciam enxergar um ditador, às vezes o fitavam como se fosse ninguém, um desconhecido, um qualquer que não fazia parte de suas memórias. Não entendia o porquê da reação de seus supostos filhos. Pensava no pai terrível que teria sido. Talvez esquecer não fosse tão ruim assim.

Todos se despediram. Um a um os passos deixaram na sala o eco lamentoso do ranger do assoalho. Apenas uma mulher manteve-se na sala, a pedido de Maria. Rosa era a terceira filha mais velha do casal e a primeira mulher a nascer da união de Maria e José. Com quarenta e quatro anos, tinha uma fisionomia tranquila; a linhas em seu rosto, apesar de denunciarem a chegada da idade, não lhe conferiam um expecto ruim, pelo contrário, desenhavam em sua face a história de uma pessoa que vivera com intensidade a maior parte do tempo.

Maria precisava ir ao banheiro, mas essa não era mais uma tarefa que podia se dar ao luxo de executar sem auxílio. Rosa laçou a mãe com os braços, tocando a bochecha no rosto quente dela. Firmou a coluna e trouxe para si o corpo da mãe proferindo um “Upa!” na execução.

– Cremdeuspai! – Riu-se Maria! – Depois de velha a gente vira criança mesmo. Até pra me levantar tem que falar upa?!

– Desculpa mãe, não resisti. – Rosa não conseguia ficar séria perto de Maria, algo nela provocava-lhe um comichão no rosto que se contorcia num sorriso constante.

– Velho, vou no banheiro e você fica quietinho aí! Se eu voltar e tiver uma menininha no seu colo, você vai se ver comigo!

– Arre, Maria! Sossega um minuto só! Não tenho paz mesmo, nessa casa.

Maria e Rosa saíram com lentidão da sala. Aproveitavam o tempo juntas para colocar em dia a conversa. Rosa contava como estavam suas aulas na escola primária onde lecionava, explicando para mãe como cada aluno se comportava na turma. O trajeto para o banheiro não passava de seis metros, mas a conversa rendeu muito. Maria se acostumara a não mais ter pressa para atingir seus objetivos.

Na sala, preso em seu silêncio, José voltava suas atenções para a missa. Perdera as leituras das escrituras e o início da homilia. O padre encontrava-se no meio de seu discurso; era um sujeito de meia idade, mas com feições novas. Falava com entusiasmo e aparentava ser descendente de italiano, pois quase todas as palavras proferidas eram acompanhadas de um gestual exagerado, como se fosse emudecer se ficasse com as mãos atadas.

– … sem se preocupar com o caminho traçado para nós por Jesus. Irmãos e irmãs, todos desejamos alcançar a felicidade, atingir a velhice e ter no passado um saldo positivo de nossas atitudes, para com nós mesmos e para com nossos irmãos. Entretanto, nessa petulância que nos é peculiar, temos a firme certeza que conhecemos o rumo certo a seguir e as decisões certas a tomar; esquecemos que nascemos na ignorância e nela permanecemos enquanto não abrimos os olhos para os dizeres, os rumos e as diretrizes traçadas por Nosso Senhor Jesus Cristo. Nossa autoconfiança nos impede de aprender com o Pai os passos certos a dar nessa caminhada, pois temos a convicção de estarmos sempre corretos. Pois lhes digo... estamos errados. Somos arrogantes por acharmos que podemos caminhar sozinhos. Ninguém, eu repito, ninguém anda sozinho nessa vida. Deus não quer isso, ele nos oferece a mão todos os instantes para que não sejamos obrigados a trafegar isolados em meio às trevas presentes no mundo. Cabe a nós perceber sua presença ao nosso lado, estender-lhe a mão e humildemente pedir ajuda. Deus ama a todos como filhos. Irmãos e irmãs, vamos abrir nossos olhos para isto, vamos abrir nossos corações para o amor de Deus, vamos permitir que o amor Dele nos contagie, vamos retribuir esse amor maravilhoso, vamos esquecer nossa soberba e, por fim, vamos permitir que Deus permaneça ao nosso lado, pois esse é o Seu maior desejo.

Ao final da homilia, o padre convocou toda a congregação a professar a fé com a oração do Creio. O som da multidão deixando seus assentos para iniciar a oração foi a deixa para José baixar seus olhos e acompanhar a prece. À sua frente, porém, algo novo chamava-lhe a atenção; uma figura sorridente e diminuta prostrava-se diante dele com um sorriso impávido. José não fazia a menor ideia de quem poderia ser; como sempre, sua mente pregava peças; já estava ficando cansados das brincadeiras de seu cérebro. Sentia saudades de encontrar pessoas conhecidas, pois hoje todos eram grandes incógnitas. Sentia-se um estrangeiro em perpétua movimentação por mundos que não conhecia.

No banheiro, Maria estava sentada no vaso sanitário branco, que havia sido elevado alguns centímetros para facilitar o uso, enquanto Rosa a observava com ar de irritação.

– Não sei por que essa teimosia? Eu posso te limpar mãe, a Margarida faz isso, porque diabos eu não posso?

– Já disse pra você não repetir o nome do cramulhão perto e mim! Me respeite! – A fisionomia suave deixou o rosto da idosa, permanecendo apenas o semblante cansado e cheio de rancor.

– Eu não consigo fazer mais nada sem a ajuda dos outros. Nunca precisei da ajuda de ninguém. Todos os meus nove filhos eu pari aqui nessa casa, só eu, uma parteira e Deus. Hoje não me deixam nem comer sozinha, pra tudo eu dependo dos outros. Sou um pedaço de bosta enterrado em uma cadeira que não consegue nem levantar sem ajuda de alguém. Se limpar a minha própria merda é a única coisa que consigo fazer sozinha, por favor, não me retire esse prazer. – Seu rosto desfigurado tinha diversas veias aparentes que ameaçavam estourar a qualquer momento.

– Mãe, desculpa! Não quis ofender a senhora. Não era a minha intenção. Eu estou fora de casa, não faço ideia do que acontece aqui. Me perdoa. – As lágrimas corriam soltas pelo rosto da filha. Vergonha, medo, raiva, tristeza eram só alguns dos sentimentos que martelavam seu peito naquele momento.

– Esquece filha, você não fez por mal. – Maria deslizava a mão esquerda pela testa, tentando enxugar um pouco o suor. – Me perdoa também! Só me ajuda aqui, vai. – A velha não sabia para quem estava gritando: para a filha, por não entender seus desejos, para si mesma, por não possuir forças para as tarefas mais simplórias da vida, ou para Deus, por não encerrar logo essa vida inválida.

Rosa mais uma vez abraçou a mãe, mas não havia prazer naquele movimento. O sangue ainda fervia em suas veias e estar perto de Maria naquela hora era o que menos desejava. Mas esse era seu dever de filha; trouxe-a para si e esperou alguns segundos enquanto a mãe se limpava. Repetiu o gesto quatro vezes e ao final suspirou aliviada pelo fim do esforço. As duas se olharam e viram o suor brilhante salpicar grande parte de seus rostos. Com o líquido salobro, também a tensão abandonou seus corpos.

– Fala verdade minha filha, você já pensou que cagar fosse tão difícil? – O riso frouxo das duas ultrapassou os limites do banheiro e atingiu a cozinha, onde os demais filhos tentavam descobrir qual a nova besteira fora proferida pela boca bendita da mãe.

De volta ao corredor, os pés cansados de Maria se arrastavam pelo assoalho da casa enquanto seu braço era enlaçado pelo da filha que, com calma, acompanhava seu caminhar lendo. Vez por outra trocavam olhares cúmplices; palavras eram dispensadas, pois o brilho de seus olhos transmitiam o amor mútuo com tal clareza que não era preciso externar o sentimento do momento.

Quando chegaram na sala se surpreenderam com uma pequena menina loira sentada no colo de José. Seus cabelos dourados passavam pouco dos ombros e tocavam delicados a blusa regata rosa. O pequeno short verde não fazia uma combinação muito boa com a blusa, principalmente porque ambas as peças estavam visivelmente gastas pelo uso, mas eram perfeitas para uma menina que estava se preparando para se esbaldar no enorme quintal da casa.

– Ora, ora! Quem foi que abriu o galinheiro para essa pintinha rosa sair? – Perguntou alto Maria enquanto se preparava para sentar-se.

– Essa é minha nova amiguinha, Beatriz! – Disse José com orgulho. – Estávamos aqui conversando um pouco e ela me pediu para mostrar os coelhos. Não é, Beatriz? – Ao que a menina respondia sacudindo a cabeça para cima e para baixo, com um sorriso lindo e o dedo indicador direito na boca.

– Nossa que bom! Será que seu pai vai deixar você levar um coelhinho para casa dessa vez? – Inquiriu Maria enquanto sentia os fios de cabelo finos da menina.

– Num sei! – Respondeu a pequena levantando os ombros com as duas mãos espalmadas para cima.

– Ah, mas pode deixar que eu vou conversar com ele. Dessa vez você vai para casa com um coelhinho branquinho! – José disse com um sorriso torto no rosto enquanto dava um pequeno beliscão no queixo da pequena.

– Eba! – A menina pulou do colo de José, que riu imediatamente do susto tomado. Sumiu da vista do casal em menos de um segundo. – Papai! Papai! Eu vou poder levar um coelhinho pra casa. Me ajuda escolher? Vamos pap... – o som doce da voz da menina perdeu-se enquanto ela rebocava o pai para fora da casa.

– Deixa eu ver se alguém está precisando de mim, qualquer coisa é só chamar. – Rosa abaixou-se e beijou a testa dos pais, primeiro Maria e após José, que ainda tinha no rosto as marcas deixadas pelo sorriso.

O casal permaneceu alguns instantes mais em silêncio, como se desfrutando da aura tranquila que a pequena garota deixara no recinto. Na televisão, a imagem distorcida e cheia de chuvisco deixava transparecer apenas uma figura torta com as mãos para o alto; deduziram eles que o corpo de Cristo estava sendo apresentado à congregação.

– Maria, essa menina é nossa neta? – José torceu um pouco a cabeça para a esquerda ao perguntar à esposa.

– Não querido, ela é nossa bisneta. É a filha do Augusto, nosso primeiro neto.

O rosto de José não recebeu a notícia com tristeza ou espanto; deixou a novidade ser assimilada pelo cérebro e prosseguiu com um leve sorriso no rosto. Não importava quem a menina fosse, ela exalava uma alegria revigorante que contagiava a todos.

– Que graça de menina.

Maria ampliou o sorriso nos lábios até a pele das bochechas se dobrarem em marcas fundas. Aproximou-se um pouco mais do marido e tocou-lhe o braço com carinho.

– Meu velho, você sempre diz a mesma coisa da Beatriz. E vou de contar um negócio, eu tenho um ciúme danado desse chamego de vocês dois, ela sempre gostou mais de você do que de mim.

José tornou a olhar para a televisão, que transmitia agora imagens quase indecifráveis da missa que deveria estar por terminar.

– Gostaria de poder me lembrar dela. – José baixou a cabeça por alguns instantes, tornou a levantá-la e fitou a esposa. – Maria, eu fui um bom marido? – A pergunta soava como súplica e Maria não conseguiu impedir que seus olhos ficassem repletos de lágrimas.

– Você não foi, você é um marido maravilhoso! Se hoje nossos filhos e netos tem alguma noção de responsabilidade é porque você esteve sempre perto, mostrando o que devia ser feito e como devia ser feito.

– Às vezes penso que posso ter sido duro demais com eles.

– Não se preocupe José. Você fez o que precisava. Tem vezes que a gente precisa ser duro mesmo. Imagina se você fosse igual eu, falando besteira o tempo inteiro...

– A gente não teria filhos, teria um monte de palhaços em casa. – Os dois riam juntos da piada de José. Seu humor era cada vez menos presente, então Maria desfrutava dele sempre quando aparecia.

– Bom, pelo menos a gente montava um circo. Dava pra ganhar algum. – As gargalhadas transbordavam os limites da sala e atingiam a cozinha, onde o restante da família amontoava-se para apreciar a alegria dos dois.

– Espero que a nossa vida tenha sido feliz. – Suspirou José enquanto recuperava o fôlego pelas gargalhadas.

– Nós fomos muito felizes, meu velho. – Maria tocava a mão do marido com a ponta dos dedos, fazendo movimentos leves e circulares, sentindo as veias grossas presentes somente nas mãos dos que sofreram e trabalharam por toda a vida; eram como uma cicatriz gerada pelo trabalho e sacrifício, uma cicatriz pulsante, que não se permitia parar. – Só lamento que você não consiga lembrar de tudo.

– Arre! Não preciso lembrar, já tenho você aqui, que não fecha essa matraca e não me deixa esquecer de nada. Sua tagarela! – Maria continuava sorrindo e percorrendo a mão do marido com os dedos. Olhava seus cabelos ralos, sua pele maltratada pelo Sol, aqueles óculos sempre caídos na ponta do nariz e agradecia a Deus por recordar-se de cada instante ao lado dele.

José virou a palma da mão para cima e agarrou os dois dedos de Maria que o acarinhavam. Em seu rosto os lábios se esticaram num sorriso e os olhos enrubesceram pelas lágrimas. Na televisão, a multidão de fiéis agradecia pela celebração do corpo de Cristo e começava a deixar a Igreja, enquanto no restante da casa o tumulto de filhos, netos e bisneta continuava; um almoço precisava ser feito. A vida seguiu para todos eles.

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