Análise – Livro – Millennium 1 – Os Homens que não amavam as mulheres

Autor: Stieg Larsson
Editora: Companhia das Letras
522 páginas. R$ 39,50

“Os homens que não amavam as mulheres” é o primeiro volume da trilogia Millennium, escrita pelo prematuramente falecido escritor sueco Stieg Larsson.

Trata-se de um romance policial que narra a história de Mikael Blomkvist, o editor-chefe da revista Millennium, um periódico que cuida primordialmente de assuntos econômicos e políticos. No início da trama, somos apresentados a um protagonista que sofre o risco de ter toda a reputação (e a revista que comanda) destruída por uma matéria investigativa que denunciava práticas ilegais do poderoso empresário sueco Hans-Erik Wennertröm.

Como a fonte que originou a matéria publicada na Millennium não se mostrou confiável, os argumentos expostos por Mikael em seu periódico foram atacados por Wennertröm. O protagonista, então, foi processado e condenado por difamação (dentre outras infrações) a 03 meses de prisão, além de uma pesada multa.

Quando tudo parecia perdido para Mikael, eis que surge uma oportunidade de salvar a reputação e a própria existência profissional de Mikael e da revista Millennium. A luz no fim do túnel deste atende pelo nome de Henry Vanger e tudo o que Mikael precisa fazer para recuperar a própria vida é descobrir quem assassinou a sobrinha desse magnata da indústria há 39 anos.

Henry Vanger não possuía filhos, portanto, tratava sua sobrinha Harriet como tal. Entretanto, seu inexplicável assassinato ocorrido há 39 anos havia praticamente destruído sua vida. E mais, o assassino parecia querer destruir psicologiamente Henry, pois, todos os anos, envia para o mesmo uma flor dentro de um quadro, costume iniciado por Harriet. O último detalhe bizarro na história é que, Henry tem fortes motivos para acreditar que um dos membros da própria família é o responsável pelo desaparecimento de Harriet.

Desta maneira, é proposto a Mikael uma pequena troca. Caso ele forneça o nome do assassino de Harriet à Henry, este não só solverá toda a dívida da Millennium como fornecerá informações que destruirão a carreira de Wennertröm, resgatando a imagem manchada de Mikael.

Sendo bem direto, este primeiro volume da trilogia Millennium é um belo exemplar de um livro policial, além de demonstrar que é plenamente possível associar uma literatura de massa, para divertimento, com uma leitura mais densa, que faça o leitor realizar uma análise crítica da sociedade em que vive.

Larsson, antes de ser um escritor, era um repórter. Assim, as questões éticas que envolvem a profissão são tratadas na obra por quem, certamente, vivenciou fatos semelhantes no dia a dia jornalístico.

O autor aborda duas questões espinhosas que envolvem a ética do jornalista e que poderiam, tranquilamente, render boas horas de conversas acaloradas: até que ponto vai o dever do jornalista em revelar para a população toda a verdade sobre determinado acontecimento? Pode, o jornalista, valer-se de meios ilícitos para encontrar subsídios que fundamentem sua reportagem?

Certa vez, Rui Barbosa afirmou que “a imprensa é a vista da nação” (A Imprensa e o Dever da Verdade, p. 20), assim, cabe ao jornalista trazer a luz da verdade para a população, que em sua maioria não tem condições de acompanhar os acontecimentos maléficos praticados diariamente. É função do jornalista, portanto, ser os olhos do povo, alcançando os recantos sombrios e obscuros, não permitindo que atos ilegais ou imorais passem despercebidos e seus autores saiam impunes.

Contudo, até que ponto a divulgação de um fato pode ser mais prejudicial do que a sua própria ocultação? Larsson aborda este ponto com classe e nos faz pensar que, às vezes, a ignorância pode trazer menos dor do que o conhecimento pleno dos fatos.

A utilização de meios ilícitos para fundamentar uma reportagem é um tema tão espinhoso quanto o anterior. No livro, Mikael e sua auxiliar Lisbeth, acabam cometendo diversos crimes para encontrar provas que tornassem viável a publicação de uma matéria. Estariam certos ou errados? No meu entender, essa é uma pergunta que cada um pode responder à sua maneira, encontrando fortes fundamentos para apoiar a opinião.

Mas, antes de ser um livro gerador de discussões acaloradas, “Os homens que não amavam as mulheres” é um livro policial divertido. Puro entreternimento.

Larsson demonstra muita segurança em sua narrativa. Seu ritmo é calmo e rico de detalhes, especialmente nos diálogos, onde o autor não poupa esforços em alongá-los, na tentativa de conferir maior profundidade aos personagens. Evidentemente, a minúcia com que o livro é escrito pode incomodar alguns; particularmente, entendo que a obra poderia ter 100 páginas a menos, sem resultar em qualquer prejuízo para a plena compreensão de todos os acontecimentos.

Entretanto, é importante ressaltar que em momento algum a leitura se torna maçante. Larsson tem uma escrita prazerosa e leve; assim, mesmo nas partes mais lentas, mantém-se o interesse na história, pois o autor faz parecer que todo aquele contexto apresentado é fundamental para o deslinde de toda a narrativa. Uma única exceção sobre a narrativa de Larsson reside em seu final, que tratarei adiante.

Auxilia, e muito, a manter o interesse sobre o livro os belos personagens criados por Larsson. A dupla de protagonistas, Mikael e Lisbeth, são muito interessantes em seus dilemas e, em meio às suas excentricidades, parecem pessoas reais, com dilemas e problemas que poderiam afligir a todos.

É incrível o trabalho desempenhado pelo autor na construção de Lisbeth, em particular. Em princípio, a personagem teria tudo para ser odiada pelo leitor, mas por um motivo inexplicável, não consegui parar de torcer por ela. Descrita na obra como uma mulher não muito bonita, magra ao extremo e com um temperamento que consegue impedir qualquer relacionamento afetivo, Lisbeth poderia, facilmente, tornar-se uma chata de galocha, contudo, Larsson faz o leitor torcer por um final feliz por essa mulher sofrida.

No que tange a história em si, como dito anteriormente, divide-se em duas frentes: a descoberta do assassino de Harriet e o caso Wennertröm. Infelizmente, aí está o problema. Teoricamente, essas duas frentes deveriam ter importância equivalente no livro, ou seja, o leitor deveria se preocupar com o desfecho do caso Wennertröm; contudo, esse ponto é tratado somente no início e no final do livro, ou seja, o leitor passa muito tempo sem ter contato com o caso em si. Assim, deixa de ter tanta importância no contexto da história (entendo que o fato de Wennertröm não ter sido retratado no livro, também diminuiu a importância do caso, pois o leitor não pode se afeiçoar com a personagem, a fim de dar-lhe importância).

Ocorre que, o mistério do sumiço adquiriu muita importância no texto e seu esclarecimento (que é decepcionante, diga-se de passagem) ocorre prematuramente. Assim, após solucionar o principal ponto da obra, Larsson “obriga” o leitor a acompanhar mais 70 páginas sobre um caso “menos" importante. Portanto, o interesse em prosseguir na leitura diminui bastante após a elucidação do caso Harriet.

Todavia, este ponto negativo não diminui a qualidade do livro. Afinal, não é todo o dia que podemos acompanhar uma história que diverte, repleta de personagens interessantes e que, de quebra, nos traz questionamentos muito relevantes para os dias atuais, onde há um excesso de informação disponível para a população (especialmente na internet) sem que haja uma preocupação ética com aquilo que é transmitido para a população. Preocupa-se demais em informar o povo, sem se ater às consequências dos fatos noticiados ou mesmo se a notícia tem qualquer fundo de verdade.

O comentário a seguir é um spoiler, portanto, não leia se ainda não terminou o livro.

Não poderia terminar essa análise sobre o livro sem externar a decepção com o caso Harriet. Quando comecei a ler a obra, imaginei que a sobrinha de Henry pudesse estar viva, mas logo imaginei: “Isso é absurdo! Ela não seria tão cruel a ponto de sumir e continuar mandando flores para o tio todo ano, quase o deixando louco!” O pior é que ela fez exatamente isso!!!! Poucas vezes vi uma pessoa tão sem coração como Harriet. Ora, quando ela mandava as flores para o tio, estava imaginando o quê? Que ele ficaria feliz por receber uma recordação da sobrinha mais amada e que, provavelmente, tinha sido morta por um parente próximo? Afinal, ela o amava demais, será que não poderia ter procurado informações sobre Henry? Não tinha a menor curiosidade em saber se o “amado” tio estava bem de saúde ou não?

Definitivamente, a solução do mistério do caso Harriet foi decepcionante. Larsson soube construir muito bem os personagens e a história em si, mas talvez não tenha se debruçado o suficiente sobre o desfecho do sumiço de Harriet. Uma pena.

Comentários

  1. Olá, companheiro. Permita-me fazer algumas considerações. Sobre seu comentário a respeito do desfecho da Harriet, pelo que entendi do livro, ela mandava flores na esperança de que o Tio as recebesse e as entendesse como um recado atestando que ela estava viva. A meu ver, seria mais burrice da parte dela do que propriamente maldade mandar aquelas flores. Ela poderia ser mais explícita, não? Ou pelo menos procurar saber se o velho estava entendendo o recado da forma correta.

    Belo blog, continue escrevendo.
    Sds
    Thriller Guy

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  2. Thriller, valeu pelo comentário. Realmente, essa interpretação que você teve sobre a Harriet é plausível. Ela realmente poderia estar tentando enviar uma mensagem a Henry. Contudo, entendo que se ela tivesse mesmo a intenção de comunicar-se com Henry poderia fazer de uma forma mais direta. Ademais, quando Mikael a encontra na Austrália, ela simplesmente não fazia ideia da atual situação de Henry, o quanto ele estava sofrendo, o que não deixa de demonstrar, no mínimo, um grande descaso dela para aquele que a tratava como filha.
    Mais uma vez, obrigado pelo comentário e pelo incentivo ao blog. Até mais!

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