Crônica - Uma Confissão
Eu pratiquei bullying.
Com um punhado a mais de esmero, poderia ter elaborado outra forma de iniciar esta crônica. Entretanto, esmero demais podem esconder justificativas nas entrelinhas. E este não será um texto de entrelinhas.
Na adolescência dos anos 90, encontrava-me na puberdade, com todos seus hormônios, dúvidas, certezas e prepotências naturais para a época.
Cursava o hoje intitulado ensino médio e na minha sala, dentre alguns judas prontos para serem diariamente malhados, havia um no qual os alunos dedicavam particular atenção. Todos o chamavam de Dumbo.
Na época considerávamos Dumbo uma figura estranha. Seu corpo era de aspecto quebradiço, os ombros levemente arqueados e, equilibrada sobre o pescoço branco com veias aparentes, pendia uma cabeça destoante do resto da criatura. Era uma cabeça grande. Boca de dentes espaçados e orelhas de abano para chancelar o apelido. Se Dumbo não fosse o escolhido, o tipo físico fomentaria a criatividade do restante da turma.
Seria errado da minha parte dizer que fui ativista praticante no bullying diário de Dumbo; era mais da turma do eco... aquele tipo de gente covarde que, sem coragem de assumir a própria idiotice e cuspir os insultos, escondia-se na muvuca formada e apenas repetia os absurdos. Ria o riso do líder, copiava seus movimentos e papagaiava os apelidos.
Por que agi assim?
Só hoje, revisando o manual lego do meu crescimento, consigo perceber os motivos pelos quais procedi assim quando era resumido a algumas poucas peças de um boneco ainda em construção.
Na infância tinha cabelo flamejante (coisa que perdi), ostentava uma bela pança (a qual tento convencer o espelho ter perdido, sem sucesso), óculos (presentes até hoje) e pouquíssima melanina (que Sol nenhum me fará adquirir). Seria chover no molhado dizer ser eu o líder master de apelido no grupo de amigos.
Nos anos 80 bullying era termo desconhecido. Eu sofria com a implicância dos colegas. Meus pais diziam para não ligar — Deixa pra lá e eles te esquecem. — Me chamavam de surdo quando fazia isso.
Era horrível todo o santo dia conviver com os apelidos criativos (alguns nem tanto assim) sendo arrotados na minha direção. Porém, existia um entendimento desenhado nas entrelinhas do relacionamento escolar de que a implicância fazia parte do processo. Todos um dia sofreriam com ela e se tornariam mais fortes por sua causa.
A aguentei até conhecer Dumbo e o silêncio reinar ao meu redor. Um novo alvo fora descoberto. Eu estava sozinho.
Mas não queria a solidão. Almejava o aconchego daquele grupo que proferia as barbaridades. Sabe-se lá a razão, eram eles os populares. Invejava o riso dos colegas e os olhares das meninas. Na ignorância da minha adolescência, anulei-me para tentar a semelhança com aqueles a quem, há pouco, repudiava.
Todavia, era covarde. Faltava-me peito para apontar as esquisitices de Dumbo. Sem personalidade, resumia-me a um eco, uma sombra.
Importava-me pouco com isso, pois mesmo sabendo ser algo horrível sofrer com aquelas implicâncias, residia em mim a certeza de sua utilidade. Dumbo tornaria-se homem, como eu havia me tornado.
Isso até o dia em que, ao final de uma de nossas sessões de descarrego, Dumbo saiu da classe chorando.
Eu detestava a implicância praticada contra mim toda a vida, mas jamais havia chorado por isso. Vê-lo assim deixou-me atordoado. Guardei o sentimento ruim em uma gaveta da minha mente até ele se dissipar e fui conversar com uma amiga sobre isso.
— Coitado, ele chora direto por conta disso. — Disse-me ela. Aquilo pairou na minha cabeça pelo tempo suficiente para notar o quanto estava errando com Dumbo. Decidi, por fim, encerrar a carreira de eco e iniciar a construção da personalidade própria. Cansara de ser sombra.
Caso este fosse um texto edificante, agora seria o momento de contar a vocês como me reaproximei de meu amigo, como nos tornamos próximos, do meu momento de confissão, do perdão e da nossa amizade duradoura.
Desculpe, mas este não é um texto edificante.
No meu manual lego, pouco havia passado da página 5 ou 6. Adolescente, era tão impetuoso quanto medroso. No caso de Dumbo, reinou a segunda opção.
Afastei-me tanto do grupo que implicava com ele quanto do próprio atingido pelos insultos. Deixei de ser eco ou sombra, passei a ser nada.
Observava os populares em seus ataques diários, bem como o pobre coitado fingindo rir daquilo tudo. Sentia-me mal, porém, fui incapaz de insurgir. A coragem adolescente guardei no armário do meu quarto, ao lado dos comandos em ação.
Os dias correram, o final do ano chegou e Dumbo saiu da escola.
Não sei o motivo, nunca mais o vi. Imagino ter mudado de cidade. Só imagino.
Sabe por que em um texto sobre bullying persisto em chamar a vítima pelo apelido? Porque sequer lembro seu nome verdadeiro.
Covarde, o humilhei. Covarde, me afastei.
Com o rolar do tempo, contudo, o exemplo dessas ações desprezíveis marcou com ferrete minha mente e empurrou-me para outro caminho. Aos poucos, com a experiência, os sentimentos atrelados àquele momento tornaram-se mais fortes e impuseram uma mudança de comportamento.
Ainda estou a quilômetros do estágio onde pretendo chegar, mas ao menos tento diariamente colocar-me no lugar do outro antes de fazer alguma piada ou brincadeira. O medo de causar o mal deixa-me em estado de atenção constante.
Infelizmente, guardo a mágoa de sequer poder agradecer corretamente ao indivíduo que me ajudou a atingir esse ponto. Dele lembro apenas os traços caricatos e o apelido pejorativo. A dor dessas lembranças impedem a repetição do erro.
Obrigado por tudo meu amigo, onde quer que esteja.
Comentários
Postar um comentário