Análise – Livro – Caim – José Saramago

Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
172 páginas. R$ 38,00.

Antes de iniciar a análise propriamente dita, é importante frisar que as opiniões aqui exaradas são referentes somente ao texto de Saramago. Tentarei não expor qualquer opinião religiosa, muito embora o livro aborde de maneira incisiva o tema.

Um segundo ponto que devo salientar (este com repercussões mais diretas ao livro) é que Saramago é ateu. Mas a leitura de “Caim” me deixou a impressão que o autor acredita que Deus não existe e se existisse o odiaria. Opinião dele, esta eu não discuto; porém, o seu aparente ódio refletiu no resultado final do livro, negativamente falando.

A história de “Caim” inicia antes mesmo de seu nascimento. Estamos falando do limiar da humanidade, ou melhor, do Universo em si.

Saramago coloca a sua visão da criação, com o jardim do éden e seus primeiros habitantes humanos: Adão e Eva (no livro, todos os personagens têm a primeira letra do nome minúscula, inclusive Deus. Mais tarde trataremos do assunto).

No início da obra, Saramago descreve não só a criação, mas o convívio de Adão e Eva no interior do Jardim Sagrado, bem como os conhecidos efeitos da gula por uma certa maçã proibida. Logo após a saída do Éden, a história direciona o foco em Caim, o primogênito do casal primeiro e personagem da primeira manifestação de inveja da raça humana.

Caim inveja a relação de seu irmão Abel com Deus, pois todas as oferendas realizadas por Abel são aceitas de bom grado enquanto as de Caim são rejeitadas sumariamente. Desta maneira, imaginando ser Abel o preferido de Deus, pratica o fratricídio.

Deus indignado com a atitude de Caim o castiga pelo ato; impõe a ele a condenação de andar errante pelo mundo até o fim de seus dias. Caim, preocupado com sua vida durante sua caminhada, imaginava que seria morto logo, pois havia matado o próprio irmão; então Deus, para evitar o assassinato de Caim, marca-lhe a testa; este sinal impediria que qualquer mal lhe ocorresse.

Desta forma, Caim inicia sua jornada pelo mundo, começando pelas terras de Nod. Seu caminhar, contudo, passa por importantes passagens do velho testamento, como a Arca de Noé, o sacrifício de Abraão, as Muralhas de Jericó e o desafio a Jó.

No meu entender, a vontade de Saramago de, com esta obra, zombar e questionar as ações de Deus foi sobreposta ao gosto literário. Ao final do livro pareceu-me que criticar Deus somente pela história de Caim era muito pouco (mesmo porque este personagem na Bíblia tem uma passagem muito pequena), queria o autor português apontar todas as passagens possíveis onde Deus teria se mostrado um tirano sanguinário.

Interessante foi a saída encontrada por Saramago para fazer com que Caim viajasse por todos esses fatos conhecidos da Bíblia. Em suas andanças Caim simplesmente sai de um lugar para o outro, como se pulasse para o futuro ou, como dito no livro, “para outro presente”.

O meio imaginado foi interessante, o resultado final não.

O que mais me incomodou durante todo o texto foi a natureza episódica da obra. Caim salta para a Torre de Babel, presencia os fatos e salta novamente para outro ponto. Visita Sodoma e Gomorra, fica escandalizado com a morte de diversas crianças inocentes pelo fogo sagrado e salta novamente para outro ponto. Em momento algum conseguimos nos afeiçoar com qualquer personagem, inclusive o principal, que por quase toda obra mais parece um coadjuvante, muito embora devesse ser o protagonista.

Em vários momentos a presença de Caim é completamente irrelevante para a narrativa, sua manutenção física no local justifica-se apenas para que a passagem bíblica a ser criticada pelo autor seja contada.

Nos poucos pontos onde a narrativa se assenta para descrever mais sobre os personagens e a situações em que se envolvem, o texto cresce. É assim, por exemplo, no início do livro com um tom cômico ótimo, ou no momento em que Caim encontra Lilith pela primeira vez.

Esta passagem em particular merece algumas observações positivas.

Em primeiro lugar, foi ótima a metáfora encontrada  por Saramago ao narra a chegada de Caim nas terras de nod. Sem emprego, a única atividade que lhe foi oferecida foi a de pisar o barro. Podemos fazer relação deste emprego de Caim com um desdém pela obra suprema do Criador ou mesmo que são os homens e não Deus os responsáveis pela própria origem e por construir o futuro.

Em segundo lugar, a personagem Lilith, muito embora não retratada na Bíblia, é bem conhecida. Conta a lenda que ela foi a primeira esposa de Adão (antes de Eva, Lilith também tinha sido gerada do barro), mas seu marido não a aprovou, pois durante o ato sexual ela se recusava a ficar debaixo do marido, queria, digamos, controlar a situação. No livro de Saramago, Lilith é a governante de uma pequena cidade; muito embora tenha marido, pode levar para cama quem bem desejar. Não é preciso gastar muito a palavra neste ponto, evidentemente, ela se afeiçoa a Caim e faz dele seu escravo sexual. Posteriormente, brota em ambos a paixão.

Infelizmente, são poucas as páginas em que o texto de Saramago sobrepõe-se às suas convicções religiosas. Após deixar Lilith em sua cidadela, Caim passa a viajar pelo Velho Testamento, criticando Deus e seus desígnios, mas sem obter êxito em cativar o leitor.

O livro tem um acentuado tom de comédia, sendo este um ponto positivo que deveria ter sido mais explorado pelo autor. Quando acerta a mão, produz passagens ótimas, como a explicação de como seria fácil evitar que Eva e Adão comecem do fruto proibido: "se realmente não queria que lhe comessem do tal fruto, remédio fácil teria, bastaria não ter plantado a árvore, ou ir pô-la noutro sítio, ou rodeá-la por uma cerca de arame farpado...".

Mas nem mesmo a comédia é boa todo o tempo, em alguns instantes Saramago flerta com o ridículo. Parece tentar repetir Terry Pratchett, mas sem a elegância e criatividade cômica do inglês criador da sensacional série Discworld.

Ponto negativo também é o desenvolvimento dos personagens; praticamente todos retratados de maneira estéril, sem criatividade. Reputo isto à natureza episódica do texto; Saramago se ateve muitas vezes ao texto Sagrado e narrou passagens demais, havia pouco tempo para construir personagens.

Aliás, como dito alhures, todos os personagens possuem a primeira letra do nome minúscula, inclusive Deus. Ao que parece, Saramago assim agiu pois repudia a Deus, não o considerando como ser digno de nota, e os demais personagens não podem ser considerados pessoas, apenas peças em um tabuleiro ou cordeiros prontos para o sacrifício.

A vida de Caim poderia render um ótimo livro, mesmo porque sua passagem na Bíblia é pequena. Poderia Saramago ter contado a trajetória sofrida do primeiro assassino da história (e no ínterim criticaria Deus conforme bem entendesse), mas seu desejo de desconstituir grande parte do Velho Testamento fez sua narrativa perder força, seus personagens perderem importância como pessoas e a piada perder a graça.

Comentários

  1. é evidente q foi um livro escrito às pressas, mas o seu texto parece ter o mesmo problema q o do saramago: ambos criticaram alguém baseados em impressões pessoais, fazendo com q os q ñ compatilhem delas tenham a sensação dq ficaram fracos.

    1 abraço

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  2. Concordo com vc, JLM.

    A crítica sobre a minúscula nos nomes é infundada, pois Saramago faz isso em todos os seus livros.

    E quanto a desenvolver personagens isso não se aplica, pois depende da intenção do autor. Não é erro, é escolha. Ele fez isso no livro Intermintência da Morte e ficou maravilhoso. Recomendo este livro para você, Luciano, como sua próxima leitura de Saramago.

    Abs.

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  3. Não tem como não agradecer ao comentário dos dois.
    Especificamente com relação à crítica das letras minúsculas, reconheço o equívoco pelo advindo do desconhecimento da obra de Saramago, entretanto, esse ponto de meu comentário até enaltece o detalhe criado pelo autor, que combinou bastante com o espírito de sua obra.
    No que tange ao desenvolvimento dos personagens, entretanto, mantenho a posição de que houve uma construção deficiente de todos. Caso tenha sido escolha do autor assim proceder, fez de maneira errada.
    Mais uma vez agradeço pelos comentários. Com certeza todos serão levados em consideração em minhas próximas análises.
    É sempre bom conversar com pessoas que manifestam a opinião.
    Um abraço e obrigado pela participação no blog.

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  4. Olá, Luciano. Que bom que tem lido Saramago e refletido sobre ele.
    Tenho uma sugestão para sua reflexão sobre Caim.
    Imagine que a intenção não é criticar Deus (ou deus); mas o próprio homem. - Se o autor é ateu, Deus para ele é uma faceta humana, certo? Não uma entidade separada do homem...
    Depois, imagine que não há profundidade de personagens pois trata-se de uma 'farsa' - só se constrói farsa assim... e a escolha mais do que se justifica uma vez que a obra justamente aponta o tom farsesco da epopéia humana...
    A narrativa de Caim 'salta no tempo' pois o protagonista representa o homem - não um ser individual, mas o homem resultante de sua condição falha (falha trágica, se preferir)- e atuante, claro, sobre seu destino, apesar de limitado - ótima sua consideração sobre Caim amassando o barro sob os pés como profissão...
    Então, ao passear sobre os episódios do V. Testamento, sim, ele escolhe ospontos mais passíveis de exposição ao ridículo pois justamente quer apontar a farsa sob o manto da história 'sagrada' que o homem escreveu sobre si.
    Finalmente: perceba que o desfecho não é exatamente acelerado, mas de uma acidez incrível: 'o homem - este homem aí exposto - é um projeto que não deu certo e não merece continuidade'.
    O filho preterido - filho da inveja, fraqueza individual - apesar de 'primeiro assassino' da 'história' é mais sujeito à redenção do que os que perpetram crimes em nome das instituições, obedecendo cegamente a ditames absurdos que provocam massacres e sacrifícios sem sentido: os 'anjos', guardas, pais (Abraão), etc... Ou seja: as relações de poder são o que há de mais corruptor na sociedade humana.
    Espero que compreenda que esta história só poderia ser contada dessa forma... a ótica mordaz sob a narrativa encontrou na forma sua estrutura perfeita.
    É isso.
    Abraço,
    Mônica

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  5. Primeiramente Mônica, muito obrigado pelo comentário. Seja criticando, concordando, o importante é a manifestação da opinião. E você fez isso muito bem.
    Quanto aos seus comentários, concordo com o fato de o livro ser uma crítica não a Deus (o ser supremo), mas aos homens que criaram essa instituição (considerando o pensamento ateu de Saramago).
    Entendi também seu posicionamento com relação ao tratamento feito à obra como uma "farsa". Contudo, o direcionamento dos meus comentários foram para a maneira como Saramago transcreveu suas ideias. Uma construção profunda de personagens não precisa ser longa para ser boa, basta que o autor separe as palavras corretas nos lugares certos para a mágica acontecer. Quem faz isso com primor é Isaac Asimov.
    Por fim, te dou toda a razão com relação à acidez do final, a qual é totalmente condizente com a obra. Sinceramente, não consigo imaginar outro final para o livro. Entretanto, entendo que a forma com que a trama foi tratada pelo autor foi acelerada ou desleixada. Poderia ter "perdido" mais umas 05 ou 06 páginas com aquele momento, nada demais, mas faria jus ao belo desfecho imaginado por ele.
    Por fim, mais uma vez muito obrigado pela sua participação. É evidente que minha análise possui falhas, nascidas do meu pouco conhecimento literário e, às vezes, do afã de postar no blog. Mas, o que vale, no final, é isso. A manifestação da opinião! Exatamente como você fez, de uma maneira consciente e fundamentada.
    Um abraço!
    Luciano!

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  6. Salve, Luciano!
    Grata pela recepção ao meu comentário. Também adoro trocar impressões sobre obras - e o fato de termos impressões para trocar já adianta a importância da obra...

    Não resisti a voltar aqui hoje, por motivo óbvio: o luto da Literatura!
    Acho que hoje o mundo fica menos inteligente, menos solidário... e mais triste também...

    José Saramago: 16/11/1922, Azinhaga (Portugal) - 18/06/2010, Lanzarote (Espanha)

    abraço,

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