Conto - Cansado de Lutar

Nossa, como estou cansado.

O Sol está chapado lá em cima, mas a sensação é de ter pelo menos uns quatro outros me rodeando. O calor estoura dos lados e ferve sob os meus pés.

Meus pés.

Preciso sentar um pouco. O tanto que andei hoje, acho ser um milagre ainda estar de pé. Nem quero olhar quando tirar os sapatos em casa. Senti umas bolhas nascendo no início do dia. Elas já estouraram, mas umas filhas nasceram no lugar. Morreram logo. Devo estar com bolhas de sangue. Se é que essas também não estouraram.

Preciso sentar um pouco.

Caminho pela praça com a cabeça baixa. Não estou com a mínima vontade de olhar para frente. Já tem uns tempos que fiquei desse jeito. Preferia sim estar diferente, mas... nem sei o que eu preferia de verdade. Hoje eu estou cabisbaixo, ontem também, por aí vai.

Olho um banco vazio logo à frente. Nem acredito estar vazio e ainda na sombra. "Deve estar cheio de merda de pombo". O pior é que não. Tão limpo quanto um banco de cimento numa praça poeirenta pode estar. Pelo menos um presente hoje. Ultimamente tenho me contentado com pouco. A vida não tem sido generosa, então aceito de bom grado cada centavo a cair de seu bolso furado. Tem caído poucos centavos.

Sento no banco devagar. Meu corpo grita ao envergar, meu calcanhar arde. Apoio minha mão direita no assento e deixo a gravidade fazer o resto dessa vez. Bato com força a bunda no banco, o corpo inteiro sacode, mas não reclamo; é bom demais sentar um pouco depois de tudo. Encosto o alto das costas no apoio e sinto a coluna gelar um pouco com a camisa ensopada de suor grudando na pele. Preciso beber um pouco de água ou vou desidratar.

A língua está grossa e os lábios secos. A saliva não os molha mais. Passo os dedos na nuca para aliviar a tensão e sinto os fiapos de cabelo molhados. Preciso de um banho.

Estico os braços e deixo-os cair na horizontal sobre o apoio do banco. Uma brisa-de-final-de-tarde me envolve pelo lado esquerdo; fecho os olhos e tento relaxar um instante. O vento na minha pele encharcada de suor da uma sensação deliciosa de frescor. Os pelos do braço arrepiaram um tanto e deixo um sorriso brotar sem vergonha. Aproveito os segundos que duram a brisa.

Largo a cabeça para trás, abro os olhos e acompanho a dança caótica das folhas que me protegem do Sol. Alguns feixes de luz passam por entre as folhas quando o balé se apruma, homens de um lado mulheres do outro. O breu volta quando os casais se enlaçam novamente.

Acompanho as folhas se ligando aos galhos, pequenos gravetos frágeis e maleáveis, conferindo o rebolado às folhas. Os galhos crescem em espessura e dureza de movimentos até se assemelhar a um exército, firme e sem permissão para fraquejar. Desembocam todos no tronco enrugado e áspero da árvore enorme que assim já era desde os tempos de meninice do meu avô. Ela deve ter mais de uns 150 anos. E ainda está aqui, meu avô não.

Lembrar do vô nunca foi muito bom. Ele era a luz em pessoa e sua partida deixou um vácuo que jamais será preenchido, pois nunca existirá outro como ele. Passo a mão direita na testa para espalhar as gotas de suor restantes e deixo a mão esquerda cair sobre o assento do banco. Quase tomo um choque quando toco o envelope.

Eu o olho com rabo de olho e recordo tudo o que passei. "Merda". Digo alto, pouco me importando com os ouvintes. Se é que alguém ouviu. Ultimamente tenho berrado em um quarto fechado e lacrado, ninguém ouve. Ninguém quer ouvir. Estão todos em seus próprios quartos gritando para o mundo ouvir. O mundo está surdo pelos próprios gritos.

Apoio os cotovelos nos joelhos. Até minha calça jeans está molhada. Estou um nojo. Enterro as mãos no rosto e rezo uma oração antiga rogando para tudo aquilo sumir de uma vez.

Lógico que não sou atendido. Quando fui?

Uma risada me desperta. Retiro as mãos do rosto e a visão mantém-se embaçada por uns instantes. A luz solar brilha branca ao atravessar o véu leitoso que cobre meus olhos.

Duas pessoas à minha frente ganham forma. Uma mulher e uma criança. Olho para a menor.

O menino deve ter passado há pouco dos dois anos. Anda bem, mas a sandália nas pedras portuguesas da praça o fazem pisar em falso de vez em quando. Corre despreocupado atrás de uma pequena bola. Quando emborca o corpo para pegá-la, o pé direito num movimento desconexo a chuta de leve para frente. Ele morre de ri. É como se um fantasma estivesse empurrando a bola para longe.

Aproxima-se novamente, olha para a bola, aponta com o indicador esquerdo e abaixa-se. De novo o pé direito espasmático joga-a para frente. Ele ri fazendo os ombros subirem e descerem no compasso da gargalhada. Logo está soluçando e babando.

— Meu Deus Miguel. Larga de ser sonso! — A mulher que o acompanha revira os olhos toda vez que o fantasma afasta a bola do menino. Ele não parece se importar com os esbravejos dela. Talvez nem esteja escutando. Prefiro pensar assim.

Ela está inquieta. Olha o menino como uma empregada que vê o cachorro do patrão cagar no tapete que acabara de colocar na sala. Aparentemente, para ela o menino é um estorvo. Está suada como eu, mas tem uma impaciência que escorre pelos poros junto com o suor. Tilinta a ponta do sapato no chão da praça, cruza os braços, descruza-os, olha o relógio, bufa, esfrega as unhas na nuca sem encostar nos cabelos amarrados em um rabo-de-cavalo, olha o relógio, coloca as mãos na cintura, bufa...

— Droga Miguel. Brinca direito com esse troço. Está parecendo retardado.

O menino, sozinho, doma o sorriso. Para, pega a bola com cuidado e senta-se. A bola pousa entre as pernas. Com os dois indicadores toca partes da borracha e canta uma música que somente encontra sentido dentro de sua mente.

— A boia. — Diz vez por outra. Bate, aperta e sacode o brinquedo. É feliz. Da pra ver. Não precisa de análise, livros ou gurus. Apenas é. Sem compreender a extensão dos sentimentos, aparentemente, ele se preocupa apenas em desfrutar o sentir. No caso daquele instante, a felicidade.

— Ah, Miguel. Vamos embora. — Ela o agarra pelo braço e o faz andar sem vontade. A bola vai quicando na frente e o menino desesperado a chama de volta.

— A boia, a boia.

A mulher chuta a bola ainda umas duas vezes até perceber que, entregando o brinquedo, o menino andará mais rápido sem chorar. Além do mais, descontar suas frustrações na bola não adiantaria de muita coisa naquela hora.

Quando saí de casa meu menino também estava chorando.

Eu sei que criança chora à toa. Quando se tem dois anos e meio, a argumentação ainda não é o seu forte, então qualquer pedido é verbalizado no choro. Naquela hora, ele queria ficar comigo, queria brincar. Eu tinha outras coisas para fazer.

Mas, do mesmo jeito que a criança chora pedindo algo, em um minuto o pedido some da lembrança e ela continua a vida como se ela tivesse começado naquele instante. Então, foi chato pra mim trancar a porta metálica da entrada do prédio e continuar a ouvir o choro abafado do Joaquim, mas em menos de dez passos isso passaria e pelo menos um de nós dois não teria mais problemas na mente.

Eu queria ser como o Joaquim, mas a idade coloca, ano após ano, uma pedra em nossas costas. Já estou num ponto em que não há mais lugar para apoiar pedras; vivo como um equilibrista, tentando manter-me em pé com aquele peso todo; a questão é que a força está no fim e o peso não me deixa pensar em mais nada... além das pedras.

Olho para meu pequeno querendo ter respostas sobre o seu futuro. Encaro o sorriso alheio dele e fico mais tenso com minhas próprias dúvidas. Penso em mil possibilidades, todas aparentemente inatingíveis.

Sinto-me um inútil. Tenho um filho apenas e sei não ser capaz de criá-lo como se deve. Sou o terceiro de quatro irmãos. Meus pais nos criaram com uma educação rígida, mas sempre com carinho. Como conseguiram? Sei lá. Dizem que antigamente era tudo mais simples. Isso parece conversa desenvolvida por quem refuta a responsabilidade paterna. Empurra para o colo da época uma responsabilidade própria.

Quando percebo, o garoto já desapareceu com a mulher. Olho em volta e noto um casal. Eles discutem sobre algo.

São jovens. Cada um com seu tempo, mas não devem ter mais de 20. Acho que são namorados. Ela fala sem parar. O rosto vermelho, arremessa para ele uma coleção de insultos. Ele não responde. Abaixa os olhos, junta as mãos e aperta com força, contrai o canto esquerdo da boca. Vez ou outra, tenta argumentar algo, mas ela impede. Ele fecha os olhos, gira a cabeça para a esquerda e continua a ouvir.

Os novos tem uma visão romântica da vida. Catapultam os relacionamentos ao um patamar de dependência quase doentia. Por isso cada desilusão é tratada como a amputação de um membro.

Ele tenta novamente. Segura suas mãos, inclina o corpo ligeiramente para frente e fala com os olhos cravados nos dela. Ela desvia o olhar e vira a cabeça para o lado. Fecha os olhos e algumas lágrimas são empurradas para fora. Morde o lábio inferior, olha para cima, relaxa a boca e percebo um leve tremor de quem deseja destruir-se em choro. O negócio ainda vai longe.

Sinto falta das brigas com a Carol.

Sempre brigamos muito. Desde os tempos de namoro, éramos dois turrões tentando impor o modo de pensar sem medir muito as consequências. As brigas eram diárias, porém, sadias. Lutávamos para convencer o outro a adotar o caminho correto. Não havia humilhação, só o firme desejo de melhorar o companheiro.

E isso funcionou por um bom tempo. Sou diferente por causa dela. Olho-me no espelho e não reconheço aquele moleque irresponsável da adolescência. Agia como se nunca fosse crescer ou ter algum tipo de responsabilidade na vida. Ela me centrou, colocou um rumo e um objetivo. Tornei-me melhor, porém, não sem muita resistência.

Lógico que brigar não era exatamente bom, mas as reconciliações eram ótimas. Quanto mais duelávamos, mais intensos se tornavam os recomeços. Seus abraços e beijos tinham força e energia, como se fossem os últimos. Amor deve ser assim, exercido como antevendo o instante derradeiro, sempre.

Hoje as brigas abandonaram nossa casa. Deixamos de tentar impor ao outro a mudança para simplesmente aceitar o fato de que "ela é assim e não vai mudar nunca". As discussões deram lugar aos suspiros de resignação. O casamento tornou-se protocolar. Apenas estamos ali. Paramos de brigar, de lutar, de tentar, de sentir. Estamos em um rio, um ao lado do outro, estáticos, apenas flutuando e nos permitindo ser conduzidos pelas corredeiras. Às vezes elas estão mais fortes outras não. Não importa, paramos de reagir. Seguimos rio abaixo, mas travados pelo conformismo de uma vida de "paz".

Olho para o envelope ao meu lado e imagino como será quando chegar em casa. Ela estará sentada na sala brincando com o moleque, ouvirá o trinco da porta, perceberá minha fisionomia cabisbaixa e tirará todas as conclusões. Sempre corretas.

Não explodirá na minha frente. Não haverá gritos, discussões ou cobranças. Apenas fechará os olhos, soltará um pouco de ar pela boca e voltará a brincar com o Joaquim. Eu beberei um pouco de água e tomarei um banho; quando o jantar estiver pronto, comerei em um canto separado da sala, esperarei o jornal terminar e irei dormir.

Algumas vezes durante a noite, acordarei me sentindo inútil, como agora.

Sinto falta das brigas com a Carol.

Vejo o casal uma última vez. Eles estão sentados com os ombros se tocando e o olhar baixo. Conversam algo impossível de ouvir, mas previsível. Estão se desculpando. Entrarão em um acordo de nunca mais discutir... até a próxima discussão.

Giro a cabeça e percebo a praça como um todo. Algo está errado.

A praça é grande e bem arborizada. Em seus quatro quantos várias mesas de cimento foram construídas e eram aproveitadas pelos idosos. Passavam a tarde jogando cartas. Tentando distrair a mente enquanto esperavam a visita da morte.

Hoje muito mais pessoas ocupam as mesas. E ao redor das mesas uma multidão acompanha os jogos. Os idosos são minoria. Homens de trinta e quarenta anos lotam o lugar. Os gritos, alguns de euforia outros de ódio, dão o tom da jogatina. Dinheiro está sendo apostado.

Olho para o envelope pardo e lembro que dois currículos ainda estão ali dentro. No começo do dia eram dez. Não que eu tenha feito corpo mole ao correr a cidade para entregá-los, eu tentei, mas nem todos aceitaram.

A maioria dos lugares onde entregava os papéis com minha qualificação, já de antemão diziam não precisar de ninguém naquele momento, pelo contrário, estavam demitindo. Alguns outros recusaram meu currículo mesmo com minhas súplicas.

Passei quinze anos na mesma fábrica, realizando a mesma tarefa. Na construção do equipamento eu era responsável por colocar três dispositivos, apertar e conferir todos os parafusos da parte dianteira.

Só isso.

Quinze anos.

Eu era bom.

Mas a fábrica fechou. Hoje as empresas vão onde o lucro está. E isso afastou-se dessa cidade há um bom tempo.

Quem manda agora não é mais aquele empresário turrão, que construiu um império do nada, que desenhou o seu sucesso com o suor e a abdicação da própria vida. Hoje as ordens partes de grupos de nerds, viciados em internet e no mercado mundial, que saem distribuindo dinheiro para a empresa aparentemente mais lucrativa. Eles não se importam com os empregados, com as famílias, com a cidade; apenas o lucro interessa. Então a empresa precisa se mostrar "interessante" para investir. Continuar aqui seria um contrassenso, portanto.

O que mais me angustia nisso tudo é não ter ninguém para odiar. Deus! Como eu desejaria odiar alguém nisso tudo.

No dia do fechamento, o diretor compareceu na nossa frente e tentou fazer o discurso. Desistiu na terceira tentativa. Ele ao menos não perderia o emprego, mas foi mandado para o quinto dos infernos, onde o custo de produção era menor.

Sei que ele sentia por nós. Estava estampado na cara dele.

Eu só queria poder sentir ódio de alguém agora. E isso não consigo sentir nem de mim.

De mim sinto somente pena.

Com esse currículo de quinze anos estou andando pela cidade há sei lá quanto tempo. Quem se presta ao trabalho de olhar meu currículo até elogia o tempo de trabalho, mas diz me faltar experiência para aquele emprego.

Afinal, foram quinze anos fazendo um único trabalho. Naquilo sou ótimo; em nada mais.

Vejo aquela multidão de desesperados, com seus semblantes tensos por estarem lançando à sorte a única chance de levar alguns trocados para casa e penso ser este o meu futuro se nada mudar em breve.

Acredito ser o Joaquim e a Carol que ainda me mantém de pé tentando algo, mas estou ficando sem alternativas. Quero fitar o futuro, mas estou cansado e o otimismo foi deixado no passado. Prefiro caminhar olhando para o chão. O futuro chegará de qualquer maneira, mas prefiro não ver o por vir, acho que a dor e a angústia são menores assim.

Está na minha hora. Vou para o ponto esperar o ônibus para casa. Passados uns poucos minutos, ele aponta no início da avenida. Lotado.

Fecho os olhos e esfrego a testa. O bar do Beto ainda está aberto.

Tenho cinco reais no bolso, o suficiente para duas pingas e para a passagem de volta para casa.

Entro no bar e deixo a cachaça embaçar um pouco a realidade. Tem sido cada dia mais difícil encará-la de frente.

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